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out/2012

Advocacia e lavagem de dinheiro na nova lei

No dia 10 de julho foi publicada a Lei nº 12.683, alterando profundamente o sistema brasileiro de prevenção e de repressão ao crime de lavagem de dinheiro implantado originariamente pela Lei nº 9.613/98.

Dentre várias mudanças, destaque-se, sem dúvida, a ampliação do rol de pessoas “sujeitas ao mecanismo de controle”. Antes restrito às pessoas jurídicas, notadamente aquelas vinculadas diretamente ao sistema financeiro nacional, a nova lei estabeleceu deveres específicos às pessoas físicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; financeiras, societárias ou imobiliárias; e, finalmente, de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais. Agora eles devem manter um cadastro de clientela e de comunicação de atividades suspeitas de lavagem.

A Constituição protege a atividade advocatícia vinculando-a apenas à administração da justiça

Essa ampliação, hoje objeto de polêmica, não constitui uma invenção brasileira. Há muito tempo a comunidade internacional notou que o crime de lavagem tem utilizado o mercado financeiro para a ocultação de recursos obtidos criminosamente. De igual maneira, detectou-se a participação de profissionais que, às vezes involuntariamente, às vezes não, emprestam seus conhecimentos técnicos à causa criminosa, contribuindo eficazmente para a prática do branqueamento de capitais.

No âmbito da comunidade europeia foram emitidas várias diretivas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu criando deveres de comunicação a auditores, técnicos de contas externos, consultores fiscais, agentes imobiliários, notários e “outros profissionais forenses independentes”.

O mesmo sucedeu com o Gafi (Grupo de Atuação Financeira), organização intergovernamental composta de 34 membros que representam os principais centros financeiros do mundo e cujo objetivo é desenvolver e promover políticas nacionais e internacionais de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo: a recomendação de nº 12 preconiza claramente a criação de deveres de vigilância relativos à clientela e à conservação de documentos potencialmente relevantes à investigação criminal aos advogados, notários, contabilistas e outras profissões jurídicas independentes.

O Brasil, obviamente, não poderia ficar alheio a esse contexto. Ainda que a Lei nº 12.683/12 não tenha se referido expressamente aos advogados, é certo que tais profissionais submetem-se aos novos deveres nela dispostos, desde que desempenhem serviços de assessoria, consultoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, sem que com isso se possa cogitar de qualquer inconstitucionalidade ou mesmo violação ao dever de segredo profissional. A razão é simples: o sigilo profissional não tem natureza absoluta. Ele, como todo direito, ainda que de caráter fundamental, deve ser sempre interpretado a partir dos valores acolhidos pela sociedade e reconhecidos na Constituição Federal.

O sigilo que incide sobre as atividades de contadores e administradores pode ser flexibilizado para viabilizar uma investigação criminal, impedir a concretização de um delito ou quando existir obrigação legal. Até mesmo o sigilo médico admite temperamentos. Ou seja, comete crime de omissão de notificação de doença o profissional de medicina que não denuncia à autoridade pública uma doença cuja notificação é compulsória, como é o caso do botulismo, da dengue, da hanseníase. Em todos esses casos, observe-se, existe manifesta e constitucional exceção à regra do segredo para a proteção de outros interesses caros à convivência em sociedade, como saúde pública e segurança.

Claro que no caso dos advogados o tema do segredo profissional revela-se mais sensível e, por esse mesmo motivo, complexo, em razão de sua vinculação ao exercício da ampla defesa e do contraditório. Isso, contudo, não pode constituir obstáculo à compreensão de que, ao estipular deveres de comunicação de atividades suspeitas de lavagem de dinheiro, a Lei nº 12.683/12 não incorreu em inconstitucionalidade, como sustentado recentemente pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) ao ajuizar a ação direta de inconstitucionalidade nº 4.841 no Supremo Tribunal Federal (STF).

A solução adequada parece encontrar-se no meio-termo: a Constituição da República delineia proteção da atividade advocatícia vinculando-a estritamente à administração da justiça (art. 133), de sorte que o advogado que atua na defesa de seu cliente em um processo judicial não pode, sob qualquer pretexto, ser obrigado a comunicar fatos que, no exercício de sua atividade profissional, tomou conhecimento, ainda que se trate de lavagem de dinheiro, sob pena de inaceitável redução do postulado constitucional do devido processo legal.

De outro lado, a atividade de consultoria jurídica que não tenha conotação processual encontra-se abrangida pelos deveres impostos pela Lei nº 12.683/12. Com efeito, na consultoria o cliente procura o advogado projetando determinada conduta que, a depender das circunstâncias, poderá, ou não, consubstanciar lavagem de dinheiro. A consultoria incide, portanto, sobre a melhor forma, ou o modo menos suspeito, de ocultar ou dissimular valores obtidos criminosamente, e isso não está atrelado, sob nenhum aspecto, à administração da justiça ou mesmo ao exercício do devido processo legal.

A propósito, foi exatamente nesse sentido que se posicionou a Procuradoria-Geral da República na ADI nº 4841. Resta-nos, agora, aguardar a palavra do STF.

Rodrigo de Grandis é procurador da República em São Paulo, com atuação nas Varas Criminais especializadas em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de ativos ilícitos de São Paulo. Professor de direito penal da Escola Superior do Ministério Público da União e do curso de especialização em direito penal econômico/ GVLaw da Fundação Getúlio Vargas.

Fonte: Valor Econômico

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