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jan/2014

Carreirão engorda a renda com bicos

O estereótipo do Servidor Público federal estável, dono de uma conta bancária invejável, está longe de ser a realidade para muitos que ocupam os cargos no serviço público. Apesar de vários deles embolsarem gordas remunerações – alguns, ultrapassando o teto constitucional, de R$ 29 mil, ao incorporarem extras -, o grosso do funcionalismo que recebe vencimentos mais baixos leva a média salarial do setor para cerca de R$ 2,5 mil mensais, conforme dados do Ministério do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não à toa, muitos têm uma dupla jornada e se viram com toda sorte de bicos para complementar o orçamento doméstico.

O Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE) mostra que as menores remunerações estão no chamado carreirão. Constituído pela base do funcionalismo, abrange 101,2 mil pessoas, entre ativos e aposentados. A remuneração inicial é de R$ 1.034, que pode ser engordada pelo tempo de serviço ou por meio de títulos conquistados ao longo do exercício da função. Nada, porém, que seja motivo de comemoração. O técnico administrativo em educação Alexandre Pires, 40 anos, que o diga. Servidor há quatro anos, ele afirma que está longe de ter um contracheque que lhe garanta um futuro tranquilo. E brinca: “Quando digo meu nome, todos lembram do cantor de pagode, mas aviso logo que a semelhança termina aí. A conta bancária é muito diferente”.

Ele afirma que seu vencimento básico, somado à progressão funcional – com base nos anos de serviço – e à Unidade de Referência de Preços (URP), que aumenta em 26% o salário dos servidores da educação, alcança R$ 2,8 mil por mês. “Não é um valor satisfatório. Tenho mulher e dois filhos para sustentar, um deles ainda pequeno. Por isso, o trabalho na educação para técnicos administrativos é sempre temporário. Ninguém faz carreira. Já vi muita gente abandonando o cargo”, ressalta.

Apesar de, desde o início, saber que o salário para a vaga disputada em concurso era baixo, o servidor foi atraído pela estabilidade. Hoje, está frustrado. “Tenho estabilidade no emprego, mas não emocional. Trabalho muito, não tenho um bom salário, o custo de vida está alto e moro mal”, desabafa Alexandre, que vive com a família na Cidade Ocidental, nos arredores de Brasília.

Para melhorar a renda, vende bijuterias, anima festas infantis e dá aulas sobre manuseio de balões. “Fiz até a logomarca das minhas bijuterias. Tem o nome da minha mulher, Cida”, conta. Todas as atividades extras rendem a Alexandre R$ 6 mil por mês. “Mas, depois do nascimento do meu filho mais novo, hoje com 1 ano e meio, o tempo ficou escasso e tenho feito menos bicos”, explica. Alexandre sonha administrar o próprio negócio. Para isso, reabrirá a matrícula na faculdade de administração, trancada há anos. “Quero retomar também porque um diploma me garantirá uma renda a mais de titulação como servidor”, destaca.

Tenho estabilidade no emprego, mas não emocional. Trabalho muito, não tenho um bom salário, o custo de vida está alto e moro mal”

Alexandre Pires, técnico administrativo em educação, que anima festas infantis e dá aulas de manejo de balões

Sonho de emprego único

Técnico do Hospital das Forças Armadas (HFA) desde 2001, Rodrigo Félix, 38 anos, só consegue fechar as contas do mês devido à dupla jornada de trabalho. Além do cargo de servidor, pelo qual recebe cerca de R$ 2,8 mil por mês ajudando em laboratório, trabalha em uma instituição particular, que rende outros R$ 3,7 mil. “Quando entrei no HFA, há quase 13 anos, meu rendimento equivalia a oito salários mínimos. Por isso, a função era atrativa. Hoje, o vencimento corresponde a quatro mínimos”, comenta.

Ainda assim, ele não pensa em trocar a carreira pública pela particular. Rodrigo quer passar em um novo concurso, de nível superior. “Foi o salário de servidor que permitiu que eu me graduasse em farmácia e fosse contratado, como farmacêutico, em um hospital privado”, conta. “Se eu passasse em outro concurso, para uma vaga com salário melhor, largaria o emprego particular” completa ele, que não esconde o desconforto diante da grande diferença de salários no funcionalismo público.

O descontentamento de Félix é compreensível, no entender do professor de direito constitucional do Ibmec de Minas Gerais, Alexandre Bahia, pois a discrepância enorme entre os vencimentos dos Três Poderes não costuma ser um padrão em outros países. “Isso só acontece em nações tão desiguais quanto o Brasil. Não é normal uma diferença tão grande entre os salários, bem como não é normal que um país seja tão desigual quanto o nosso”, acrescenta Alexandre Cunha, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Ele ilustra, por exemplo, casos de países europeus e do vizinho Uruguai onde há a normativa de os servidores receberem salários conforme a titulação. “Existe uma disparidade muito pequena entre um professor e um juiz de direito. No Brasil, um magistrado em início de carreira ganha mais do que um ministro da Suprema Corte americana”, exemplifica. (BN)

Funções estão em processo de extinção

A dura vida dos servidores que integram o carreirão está distante de ter um alívio. Apesar dos recentes aumentos salariais concedidos pelo governo, de 15,8% em três anos, os rendimentos continuam defasados. Como são muitos, se esses funcionários recebessem reajustes maiores, o impacto no Orçamento seria pesado, conforme explica Alexandre Cunha, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O carreirão tem outro agravante: é composto por mais inativos do que ativos. Por isso, sua tendência é de extinção ao longo do tempo. A meta do governo é substitui-los por terceirizados.

Conforme o Ministério do Planejamento, existem hoje 39.439 ativos e 61.816 aposentados no carreirão. Isso acontece porque o Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE) concentra “uma parcela de cargos da administração que são estritamente operacionais, muitos deles em processo de extinção a partir das aposentadorias de seus ocupantes, por serem desnecessários para a realidade atual” do funcionalismo.

É importante ressaltar que a base do funcionalismo público vai além do carreirão, pois inclui funcionário da Previdência, da Saúde e do Trabalho. Juntos, somam 385 mil trabalhadores. Há ainda o pessoal da educação e da ciência e tecnologia. Nesses dois casos, os salários mais baixos são pagos para aqueles que não são contratados em regime de dedicação exclusiva ou possuem baixa titulação (mestrado e doutorado).

“Existem dois indicativos básicos para essas áreas há algum tempo. Servidor de pesquisa deve ter dedicação exclusiva e titulação. O governo paga, de propósito, salários muito ruins aos pesquisadores não titulados, porque não quer que eles existam dentro do corpo de pessoal. O mesmo vale para professores só com graduação”, pontua. Um professor de ensino básico e técnico sem titulação que trabalha durante 20 horas recebe, inicialmente, R$ 1.597 por mês, podendo chegar a R$ 2.165. Caso tenha doutorado e regime de dedicação exclusiva, o salário começa em R$ 8,8 mil e pode alcançar R$ 14,1 mil.

O encolhimento das vagas do carreirão não está restrito ao Executivo. Também no Legislativo e no Judiciário o número de servidores que exercem funções que integram esse grupo da base do funcionalismo encolhe rapidamente, seja por meio da aposentadoria, seja por meio da realocação para outros postos.(BN)

Atendimento ao cidadão

O carreirão é composto por todos os cargos efetivos de nível superior, intermediário e auxiliar não integrantes de carreiras específicas, Planos Especiais de Cargos ou Planos de Carreiras instituídos por leis específicas. Pertencem a ele os postos do Plano de Classificação de Cargos das autarquias e fundações públicas, os analistas técnico administrativos de nível superior e intermediário, com atribuições determinadas por lei (no atendimento ao cidadão, por exemplo), analistas em tecnologia da informação, agente e auxiliar na questão indígena.

O peso do diploma

Sônia Maria Aguiar, 56 anos, ingressou no serviço público em 1986 para um cargo de auxiliar de agente de portaria. Com o passar dos anos, foi realocada para a área administrativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). É ela a responsável pela entrada, no almoxarifado, de todo o material de consumo do órgão. Não é por essa função, contudo, que a servidora é conhecida.

Basta dar a hora do almoço para vários colegas do ministério começarem a aparecer no subsolo, onde fica a sala de Sônia. Para complementar o salário de R$ 3 mil (a soma do vencimento básico, de R$ 1,9 mil, com os extras por tempo de serviço), ela vende produtos de beleza de várias marcas. Não há quem não conheça as mercadorias ofertadas pela servidora.

Satisfação

Sônia sabe que ganha pouco, mas não reclama. “Tenho orgulho do meu salário, pois já sabia que seria assim. Só tenho o segundo grau. Não tive recursos para fazer faculdade e acabei me acomodando. Mas eu gosto do que eu faço”, diz, refletindo um sentimento pouco comum entre os técnicos do carreirão. “Já recebi vários convites para ir para outros órgãos, outros setores, mas não vou. Tem gente que fica mudando o tempo todo, atrás de gratificação ou por estar insatisfeita. Mas eu não”, completa.

Ela conta que foi a primeira servidora da família baiana, de Salvador, de pais açougueiros. “Passei logo no primeiro concurso que fiz”, lembra, orgulhosa. A estabilidade a fisgou. “Trabalhei como copeira em um órgão público assim que terminei o segundo grau. Via os servidores e quis ter aquela estabilidade. Era a década de 1980 e vivíamos uma situação econômica muito complicada. Era importante ter segurança financeira”, conta.

Hoje, com o quadro econômico mais estável do que quando optou pelo funcionalismo, Sônia afirma que, talvez, pensasse duas vezes antes de ser servidora. “Tem gente que tem vocação para ser gerente, administrador, ter o próprio negócio, mas se ilude com o serviço público. As pessoas acham que só há bons salários, que o servidor chega, coloca o casaco na cadeira e sai, não faz nada. Isso não existe mais”, afirma.

Fonte: Correio Braziliense

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