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out/2012

Exceção virou regra

Por *Gil Castello Branco

Desde a Grécia Antiga, os administradores são obrigados a prestar contas. À época, a comunidade reunia-se na Ágora, a assembleia do povo, para examinar a contabilidade dos arcontes, embaixadores, generais e de todos aqueles que geriam verba proveniente dos impostos arrecadados. No século 21, a Ágora é a web.

Nesse sentido, duas leis relativamente recentes merecem destaque. A primeira, a Lei Complementar 131/2009, obriga a União, estados e municípios a publicarem suas contas na internet. Em função dos prazos aprovados no Congresso Nacional, a aplicação da lei é gradativa. Em 2010, as cidades com mais de 100 mil habitantes foram obrigadas a disponibilizar dados em sítios na internet. Em 2011, as prefeituras de cidades com mais de 50 mil habitantes tiveram que fazê-lo. Em maio de 2013, todas as 5.568 cidades do país estarão abrangidas pela lei da transparência. Trata-se, a nosso ver, de legislação tão importante quanto a iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa. Enquanto esta evita que os corruptos sejam eleitos, aquela amplia o controle social. As duas regras contribuem, portanto, para afastar maus políticos e gestores da vida pública.

A maior novidade legal, no entanto, é a chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). Na teoria, basta um pedido de qualquer interessado para que os órgãos públicos informem, no máximo em 30 dias, tudo o que não estiver relacionado à segurança do Estado, ao segredo de Justiça ou à privacidade do cidadão. O que não puder ser divulgado deverá ser denominado de reservado, secreto ou ultrassecreto. As solicitações podem ser feitas pela internet, sem que haja necessidade de deslocamento a qualquer órgão público. Tudo muito simples, tal como acontece há tempos em mais de 90 países. A própria Controladoria-Geral da União (CGU) divulgou cartilha explicativa sobre a nova legislação.

No papel, tanto a Lei Complementar 131 quanto a LAI são instrumentos quase perfeitos. Na última semana de setembro, inclusive, a Lei de Acesso à Informação brasileira ficou na 14ª posição entre 93 países avaliados pelas Organizações não governamentais (ONGs) Centre for Law and Democracy, do Canadá, e Access Info Europe, com sede na Espanha. O Brasil alcançou 110 pontos de um máximo de 150 no estudo divulgado em 28 de setembro, data em que é comemorado o Dia Internacional do Direito de Saber.

A pontuação deixa o país à frente, por exemplo, do Chile e Nova Zelândia (ambos com 93 pontos), dos EUA (89 pontos) e da legislação da Suécia, a mais antiga do mundo, datada de 1866 (95 pontos). A lei da Sérvia ocupa o primeiro lugar com 135 pontos. Índia e Eslovênia aparecem em segundo lugar com 130 pontos cada e a Libéria em terceiro com 126 pontos. O grau de implementação das leis não é avaliado.

Vale lembrar que nos primeiros quatro meses de implementação, e de acordo com dados da CGU, quase 36 mil pedidos de informação foram feitos a órgãos federais. Desse total, aproximadamente 33 mil já teriam sido respondidos, o que representa um início surpreendente – tanto do ponto de vista da participação da sociedade civil quanto do esforço das autoridades.

Entretanto, é oportuno destacar que a estatística da CGU refere-se ao Poder Executivo Federal, não englobando o Legislativo, o Judiciário e as instâncias estaduais e municipais. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o jornal Zero Hora contabilizou resultado menos animador. Dos 104 pedidos feitos pelo veículo de comunicação desde 16 de maio, quando a LAI entrou em vigor, apenas 44% foram respondidos de forma completa. As dificuldades se repetem em todas as esferas de governo, mas um caso verificado na Assembleia Legislativa daquele estado mostra nitidamente como a lei ainda não é plenamente respeitada.

Nos últimos três meses, o Zero Hora vem tentando, sem sucesso, obter junto à Assembleia Legislativa a lista dos funcionários com cargos em comissão (CCs) autorizados a trabalhar fora da sede do parlamento, bem como os locais onde cumprem suas funções. A administração da Assembleia, que gasta em torno de R$ 6,8 milhões mensais com CCs, inicialmente alegou desconhecer quem são as pessoas que podem atuar fora. Segundo o parlamento, a informação seria de conhecimento apenas dos gabinetes dos deputados e das bancadas. Dessa forma, o periódico encaminhou o pedido aos 55 gabinetes e às 11 bancadas, mas só um dos deputados atendeu prontamente à solicitação. Em resposta a mais uma tentativa do Zero Hora, o superintendente-geral da Casa, Fabiano Geremia, enviou ao jornal um e-mail do qual não constavam as informações requeridas. Apesar de o Zero Hora ainda ter recorrido, a mesa diretora novamente deixou de prestar a informação.

Na Associação Contas Abertas, temos experiências semelhantes. Apesar do prazo de seis meses transcorrido entre a assinatura da lei e a sua vigência efetiva – justamente para que os órgãos se preparassem –, a Câmara dos Deputados não conseguiu disponibilizar as notas fiscais das despesas efetuadas em janeiro pelos deputados federais com a Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar. A princípio, alegou que a informação já se encontrava no portal, o que não era verdade. Ali apareciam tão somente o nome dos estabelecimentos e os valores pagos, mas não os documentos fiscais. Após a renovação do pedido, surgiu a promessa de que o primeiro lote de notas fiscais digitalizadas estaria disponível a partir de 23 de julho, o que não aconteceu. Em resposta a novo pedido feito em setembro, a Câmara informou que não existe data ou previsão exata para tornar disponíveis as imagens das notas fiscais referentes à referida cota, o que permitiria aos cidadãos conhecer em detalhes as despesas efetuadas pelos deputados.

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) não forneceu, no prazo de 30 dias, informações sobre as viagens internacionais dos seus ministros, detalhando nomes, destinos, diárias pagas e justificativas. Alegou a Corte no primeiro mês de vigência da LAI que o instrumento legal estava sendo objeto de regulamentação pela Comissão de Regimento, composta pelos ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski. Conforme informações da assessoria, já existe uma minuta pronta, mas, tendo em vista o julgamento do mensalão, a comissão ainda não aprovou a regulamentação. A verdade é que, se o próprio STF não cumpre os prazos da lei, quem o fará? “As leis existem, mas quem as aplica?”, dizia Dante Alighieri.

Paralelamente, algumas vitórias significativas têm sido alcançadas. Depois de enorme polêmica, desde de setembro, os nomes e os salários dos servidores do Poder Legislativo estão disponíveis para consulta na internet. Desde 31 de julho, Câmara e Senado vinham publicando as listas, mas sem nomes em razão de decisão judicial. Este é o primeiro mês em que a divulgação nominal passou a ser feita, após a suspensão da liminar obtida pelo Sindicato dos Servidores do Legislativo (Sindilegis). Aliás, este tem sido o maior tabu da Lei de Acesso à Informação.

O que os sindicatos ainda não perceberam é que, ao defenderem a suposta privacidade individual, estão contribuindo para manter ocultos os ganhos astronômicos de alguns privilegiados e as distorções entre as remunerações existentes nos três poderes. A simples divulgação desses dados será o início da correção desses absurdos. Afinal, um ascensorista do Senado não deveria ganhar mais do que um professor ou um médico. Os argumentos dos sindicatos são que a divulgação dos nomes sujeitaria os servidores a atos de violência e que a invasão de privacidade feriria até mesmo a Constituição.

Apesar da resistência de algumas classes sindicais, muitos países publicam os salários dos servidores públicos, como Chile, Peru, México e Estados Unidos, além de diversos países europeus. A tese é que a divulgação salarial não invade a privacidade do indivíduo, o que só ocorreria se fossem divulgados os gastos do servidor público. Argumentam ainda os adeptos da transparência que em uma empresa privada os patrões conhecem os salários dos funcionários e, no caso dos servidores públicos, os patrões somos todos nós.

O filósofo Charles de Montesquieu costumava dizer: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda parte”. De fato, a questão, agora, é assegurar a efetiva implementação dessas leis. Devemos enfrentar desafios de natureza técnica, tecnológica e administrativa que incluem a necessidade de recursos financeiros e humanos. Além disso, teremos que vencer a cultura do sigilo, que, de forma silenciosa e invisível, ainda representa um grande entrave para a abertura dos governos.

Apesar da boa intenção de alguns órgãos governamentais, notadamente da CGU, vai demorar para que todos entendam que o Estado é somente o guardião da informação pública. Assim, teremos que continuar lutando para que o acesso seja a regra e o sigilo a exceção. Tal como dizia Montesquieu, o país deve ser valorizado pelas leis que pratica e não pelas que são editadas e ficam restritas às prateleiras dos advogados.

Com a Lei de Acesso à Informação, somente aquelas definidas como reservadas, secretas ou ultrassecretas não são passíveis de liberação. Para As demais não pode haver restrição.

Atuando de forma silenciosa e invisível, a cultura do silêncio ainda representa um grande entrave ao livre acesso da população à informação.

Divulgação dos salários dos servidores públicos não invade a privacidade deles. Invasão somente ocorreria se fossem divulgados os gastos pessoais.

*Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas (gil@contasabertas.org.br).

Fonte: Correio Braziliense

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