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mar/2012

O STF e a confiança pública

Saul Tourinho Leal

Oliver Wendell Holmes, um dos maiores juízes dos Estados Unidos, integrou a Suprema Corte de 1902 a 1932. Certo dia ele deu carona a um jovem juiz ao ir para o trabalho. Chegando ao local, o jovem desceu e, avistando a carruagem partir, gritou esboçando um sorriso romântico: “Faça justiça”! Holmes ordenou ao condutor que voltasse e bradou: “Não é esse o meu trabalho”! A carruagem fez meia-volta e seguiu. Se o papel de uma Suprema Corte não é fazer justiça, qual seria sua missão?

A função precípua do Supremo Tribunal Federal (STF) é a guarda da Constituição Federal, mas semana passada esse compromisso foi alvo de intensos questionamentos. A Corte reputou inconstitucional a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), pois a tramitação da medida provisória que lhe deu origem não obedeceu à Constituição. Concedeu-se ao Congresso Nacional dois anos para que aprovasse uma lei regularizando a criação do instituto. Até lá ele continuaria existindo.

Dia seguinte, o advogado-geral da União suscitou uma questão de ordem: 560 outras medidas provisórias haviam sido aprovadas irregularmente, fato que traria o caos. A Corte declarou a inconstitucionalidade do procedimento do Congresso que não operava a Comissão Mista na análise das medidas provisórias e o fez com efeitos futuros, garantindo a validade das 560 medidas provisórias inconstitucionais. O STF mudou de posição e proclamou a constitucionalidade da criação do ICMBio. Fez-se justiça?

A primeira decisão do STF era irretocável. Fundada na segurança jurídica, a Corte flexibilizou – como já o fez dezenas de vezes – a nulidade gerada pela inconstitucionalidade de uma lei. O Supremo preservaria, por dois anos, atos inconstitucionais, abrindo espaço para o Congresso reparar o seu malfeito, sanando as inconstitucionalidades por meio da aprovação de novas leis obedientes à Constituição.

O relator, ministro Luiz Fux, citou o precedente da criação irregular de municípios. Tais criações eram inconstitucionais e o Congresso teria 18 meses para elaborar a lei que estabelecesse o prazo para tais procedimentos. Nesse caso, a ação foi julgada procedente e o Legislativo aprovou a Emenda Constitucional nº 57/2008, convalidando os municípios inconstitucionais e pondo fim à insegurança jurídica.

A primeira decisão do ICMBio imporia ao Executivo se mobilizar junto ao Congresso para convalidar as medidas provisórias aprovadas irregularmente. Entretanto, sabe-se do custo político de uma engenharia legislativa dessa magnitude. Quem terminou arcando foi o próprio STF. Após a decisão, a imprensa estampava manchetes sobre o recuo da decisão do STF sobre medidas provisórias e o surgimento de nova polêmica.

Questões de ordens que alteram julgamentos sempre desgastam. Após a apreciação do caso Cesare Battisti, o governo da Itália suscitou uma questão visando esclarecer o voto do ministro Eros Grau. O ministro Marco Aurélio afirmou: “Não podemos ficar reabrindo, em sessões subsequentes, o que assentado de forma correta pelo plenário”. E arrematou: “O que pretende o governo é uma virada de mesa”.

No caso do ICMBio, pode-se supor que a Corte sabia do impacto do julgamento. Na primeira decisão o ministro Fux afirmou: “É inimaginável a quantidade de relações jurídicas que foram e ainda são reguladas por esses diplomas, e que seriam abaladas caso o Judiciário aplique, friamente, a regra da nulidade retroativa”.

Dialogar previamente com os colegas sobre um caso é uma lição de articulação institucional, principalmente considerando a exposição do STF com as transmissões ao vivo das sessões plenárias. Não há problema em os julgadores considerarem as consequências de suas decisões. Contudo, esse exercício deve ser feito antes de levar o caso a julgamento, não depois de proclamado o resultado. Isso evita desgaste.

Uma das mais dramáticas decisões tomadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos foi a que determinou o fim da segregação racial. A articulação institucional exercida pelo presidente da Corte, Earl Warren, foi primorosa. Diante do assunto e do acirramento dos ânimos, Warren propôs que discutissem informalmente, sem tomar quaisquer votos. Eles iniciariam as discussões em sessões prévias, em conversas informais até mesmo em almoços. Essa atitude maturaria as opiniões fazendo com que o caso fosse apreciado após um longo processo de formação de convicções. A Corte considerou antecipadamente todos os impactos da decisão.

Com o surgimento de situações complexas, o grau de refinamento das decisões de uma Suprema Corte se eleva. Contudo, declarar constitucional algo que sabidamente não o é abre uma porta perigosa que até então estava fechada. Em dezenas de casos difíceis o STF flexibilizou os efeitos da inconstitucionalidade, preservando atos passados, mas jamais afirmando que algo inconstitucional era constitucional. Vale lembrar Oliver Wendell Holmes, que da janela de sua carruagem disse não estar na Suprema Corte para fazer justiça. O STF só faz justiça quando zela pela Constituição.

Não se pode colocar em risco a confiança pública depositada no STF. Sandra O”Conor, primeira mulher a compor a Suprema Corte norte-americana, certa vez disse: “Nós não possuímos forças armadas para dar cumprimento a nossas decisões, nós dependemos da confiança do público na correção das nossas decisões. Por essa razão, devemos estar atentos à opinião e à atitude públicas em relação ao nosso sistema de justiça, e é por isso que precisamos tentar manter e construir esta confiança”.

O STF é o derradeiro degrau de uma extensa escada judicial. O seu capital é a respeitabilidade pública. Os cidadãos constitucionais precisam confiar na sua Suprema Corte e acreditar que, quando ela diz “sim”, é “sim” e quando diz “não”, é “não”.

*Saul Tourinho Leal é pesquisador-visitante na Georgetown University, doutorando em Direito Constitucional na PUC/SP e professor de Direito Constitucional.

Fonte: Valor Econômico

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