02

maio/2012

Pergunta: Qual é a dimensão da corrupção no Brasil? Qual é a melhor forma de combater esse problema?

Por Fernando Filgueiras

“De fato, fiel às aspirações do povo, que acredita ser a democracia o regime mais conveniente para alcançarmos a justiça social dentro da ordem e do respeito aos direitos de cada qual, o governo continuará a praticá-la e a aperfeiçoá-la. Na realidade, não basta praticá-la; é mister aprimorá-la incessantemente, inclusive através da legislação, para que tenhamos uma democracia onde não possa medrar a corrupção ou a subversão. Uma democracia, enfim, que seja real seleção de valores, e proporcione a cada qual número cada vez maior de oportunidades para progredir e se afirmar como membro de uma sociedade aberta a todos, sem privilégios de qualquer natureza.”

Esta longa citação pode nos acometer, a princípio, os melhores sentimentos. De fato, a democracia pode ser a melhor forma para almejarmos o combate à corrupção e a construção de uma sociedade sem privilégios. Uma sociedade justa, conforme nobre discurso, é aquela na qual há liberdade e justiça que assegure iguais oportunidades a todos. O problema é que esta citação é extraída de um discurso pronunciado pelo presidente Humberto Castelo Branco no dia 31 de dezembro de 1964, saudando o povo brasileiro no limiar do Ano Novo. Ano esse que deu início a vinte anos de ditadura e exceção institucional.

Naquela ocasião, havia um forte discurso a favor da moralidade política, com forte apelo junto à classe média e trabalhadores em geral. De fato, varrer a corrupção já era objetivo posto pelo ex-presidente Jânio Quadros. O problema é que se tínhamos corrupção na democracia, o custo para combatê-la foi a corrupção da própria democracia.

O regime de exceção que se instalou no Brasil prometera acabar com a corrupção, criando um livro branco das contas públicas que desse transparência – palavra essa não utilizada à época – aos atos do governo. Mas o contexto de exceção não permitiria a liberdade de expressão e a liberdade de informação. O resultado é que a corrupção degenerou o próprio contexto da exceção, proporcionando uma transição e o retorno para a democracia.

Desde então, o Brasil convive com a presença de escândalos de corrupção. Três anos após o retorno à democracia, a sociedade brasileira ficou estupefata com o volume das maracutaias no governo Collor. O resultado foi o impeachment, dentro da normalidade democrática. Não recuperados do choque, veio o escândalo do orçamento, mostrando a capilaridade da corrupção no aparato estatal.

Depois disso, escândalo das comunicações, do jogo do bicho, da Sudene, da Sudam, a compra de votos para a emenda da reeleição, os precatórios, o TRT de São Paulo, o caso Marka, o caso Celso Daniel, o propinoduto, o mensalão, a operação Satiagraha, a operação Monte Carlo. A lista é muito maior e parece não ter fim.

Será defeito da democracia? Certamente que não. A corrupção e os seus tentáculos no Estado brasileiro têm sido cada vez mais desvelados para a opinião pública. A diferença para o contexto de 1964 é o adensamento do valor da democracia na sociedade brasileira. E a sua relação com a corrupção não está no fato de que a sociedade considera a democracia mais corrompida. Está no fato de que a sociedade considera a luta contra a corrupção um dos principais elementos para a construção do sentido da democracia. Não é por acaso que a presidente Dilma assumiu fortíssima popularidade e apoio da opinião pública quando foi posto a ela o rótulo de faxineira da corrupção.

Apesar dos escândalos nos horrorizarem e suscitarem os sentimentos moralistas de sempre, uma mensagem de otimismo é válida. O Brasil, no quesito luta contra a corrupção, vive um momento distinto em sua história, pois combina o nascedouro de uma cultura política democrática com o desenvolvimento de instituições de controle. O otimismo, entretanto, não pode obscurecer o realismo. Ainda temos muito que fazer para tornar a corrupção controlável e condizente com os padrões da publicidade. Mas o caminho está sendo traçado, independentemente de governos, porquanto esteja alicerçado em preceitos democráticos fortes. Trata-se de uma construção institucional independente dos governos, porquanto apoiada na própria sociedade.

Do ponto de vista da cultura política, a luta contra a corrupção tornou-se um dos elementos centrais para a solidificação dos valores democráticos. Hoje o brasileiro considera a corrupção um problema grave ou muito grave e percebe a atuação das instituições de controle como fundamental para a construção de um Estado democrático. Não por acaso os brasileiros atribuem à luta contra a corrupção um dos elementos fundamentais para o conhecimento da democracia. Essa mesma cultura política é mais crítica às mazelas institucionais e percebe que as instituições, apesar disso, são essenciais para o funcionamento do regime político. Ainda persiste certa ambivalência nessa questão da cultura política, à medida que a sociedade não percebe a corrupção praticada no mundo privado, justificando certa tolerância com o malfeito. Mas é um avanço considerável.

Por outro lado, ao transparecer a corrupção, o Estado brasileiro tem proporcionado o desenvolvimento de instituições que têm sido instrumentalizadas para o enfrentamento das maracutaias do poder. As mudanças nos Tribunais de Contas, tanto na União quanto nos Estados, a criação da Controladoria Geral da União, o fortalecimento da Polícia Federal, a autonomia do Ministério Público e o desenvolvimento das ouvidorias colaboram para o aprofundamento do princípio da “accountability”.

Palavra esta que não tem uma tradução literal para a língua portuguesa, mas que não se restringe a uma ideia gerencial de prestação de contas. “Accountability” vai além disso. Refere-se também à representatividade democrática das decisões políticas e aos processos de avaliação no âmbito da gestão em contextos de liberdade de expressão. Só a partir da “accountability” que podemos afirmar que as decisões políticas, bem como a aplicação dos recursos públicos, será legítima, conforme os ditames da publicidade em uma democracia.

O Brasil certamente caminha na direção do fortalecimento da “accountability” como um princípio fundamental da gestão pública. Porém o caminho ainda é longo. E, ademais, a “accountability” é um princípio ambíguo para a democracia, pois a crítica da cidadania paira exatamente sobre as instituições da representação política. A fronteira que separa a corrupção na democracia em relação à corrupção da democracia é muito tênue em uma situação de forte crítica às instituições de representação política, tais como os legislativos e os partidos políticos. Nesse contexto, é fundamental enfrentar o problema da impunidade dos crimes de corrupção e fortalecer os mecanismos de inteligência e integração institucional. E mais do que isso, assegurar que a maturidade cultural e institucional que se arvora não permita que passemos da corrupção na democracia para a corrupção da democracia. A história está aí para mostrar que essa não é uma boa escolha.

* Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG. Organizou, com Leonardo Avrtitzer, “Corrupção e Sistema Político no Brasil” (Editora Civilização Brasileira, 2011).

COMPARTILHAR