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jul/2014

Sobre a aposentadoria dos policiais

Por: Fabrício Rosa

No início do mês, o Tribunal de Contas da União, ao analisar denúncia relativa à aposentadoria especial dos policiais rodoviários federais, no processo nº TC-005.629/2013-6, proferiu sentença que deixou muitos policiais assustados, pois ingressou em temas ainda pouco debatidos nas instâncias deliberativas superiores do país, como o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal.

Explicando: os policiais rodoviários federais, como todos os policiais brasileiros, fazem jus à aposentadoria especial, prevista no inciso II, § 4º do art. 40 da Constituição Federal, por exercerem atividade de risco, dessa forma, com trinta anos de contribuição, se homens, podem reivindicar o direito ao descanso profissional remunerado.

Na recente decisão, a Corte de Contas entendeu que têm direito à aposentadoria diferenciada apenas aqueles policiais que, além de contar com, no mínimo, vinte anos de exercício de cargo de natureza estritamente policial, conforme texto do art. 1º, II, da LC 51/85, tenham efetivo desempenho de atividades em condições de risco, o que poderia parecer excluir do benefício aqueles agentes que atuam na atividade-meio de suas corporações. A impressão é que o tribunal buscou inovar o ordenamento, ao estabelecer a necessidade desse segundo requisito, mas, no nosso ponto de vista, não o fez.

A respeito da primeira exigência, qual seja, o exercício do cargo de natureza estritamente policial, não resta dúvidas que todos os PRFs a preenchem, independentemente de sua lotação, pois tomaram posse em cargo cuja essência é policial. O segundo requisito é o que tem gerado grande preocupação, visto que ainda não se definiu o que, de fato, seja uma atividade de risco em âmbito policial.

Na ausência de dispositivo legal que defina o que venha a ser RISCO, tentarei delineá-lo. Comecemos pelos dicionários. Segundo o Houaiss risco é a “probabilidade de perigo, geralmente com ameaça física para o homem” ou a “probabilidade de insucesso de determinado empreendimento, em função de acontecimento eventual, incerto, cuja ocorrência não depende exclusivamente da vontade dos interessados”(Versão Eletrônica, 2009.3). Na definição das irmãs Michaelis, risco é o “perigo inerente ao exercício de certas profissões, o qual é compensado pela taxa adicional de periculosidade” (Michaelis on-line). Essa, no meu ponto de vista, parece ser uma explicação bastante assertiva, já que demonstra que a condição de perigo é imanente à constituição de algumas ocupações.

No caso do policial, as representações sociais não conseguem descondensar o arquétipo que o identifica com a imagem do guerreiro, figura que disporia de força e aparato superiores aos dos civis, mas que também estaria submetida a ameaças mais complexas que aquelas vividas pelos demais cidadãos. É dessas representações que nascem todas as construções jurídicas que obrigam o policial a agir de forma moralmente diferenciada dos outros ao, por exemplo, presenciar um crime (art. 301, CPP).

A relação entre ser policial e correr perigo, independentemente do local de atuação do profissional, é simbiótica, pois é impossível optar pela atividade policial e, simultaneamente, assinar uma cláusula que garanta os mesmos riscos experimentados por aqueles que preferiram as carreiras públicas não policiais.

Éstá implícito no ethos policial a sensação de maior responsabilidade pelas demandas por segurança da sociedade. Vivê-lo é ingressar em um ordenamento que lhe impõe responsabilidade aumentada e o sujeita a sanções mais rígidas ao presenciar casos em que outros cidadãos sequer seriam apenados, como nos crimes omissivos impróprios. Traduzindo: estamos falando daqueles delitos onde é possível ser condenado não por ter cometido um crime, ou participado de sua execução, mas por ter deixado de impedi-lo. Para essas circunstâncias, baseado nas representações sociais que fazemos da figura do policial, o Direito criou uma causalidade jurídica absolutamente desapegada da causalidade fática, pois entende que o agente tem a obrigação moral de atuar em determinadas situações de forma diferente dos demais cidadãos. É o caso, por exemplo, de um policial que deixa, flagrantemente, de agir quando uma pessoa grita por socorro e que, em seguida, vem a ser assassinada por seu algoz. O policial pode vir a ser condenado por homicídio, mesmo sem ter dado causa à morte, imputação que jamais recairia sobre um cidadão comum. Isso por que as normas de convivência social e, consequentemente, a legislação, submetem todos os policiais a esse dever diferenciado de agir, independentemente de atuarem a maior parte do tempo na atividade-fim ou na atividade-meio, pois basta o fato de performatizarem enquanto agentes de segurança para serem co-responsabilizados por determinadas situações.

Ocorre que as construções do imaginário social não são frutos do nada. Elas dão concretude simbólica a fatos do mundo real. E nele, os policiais correm riscos diferenciados, o que pode ser demonstrado pelo fato de todos os agentes serem obrigados a viver constante e semiparanoicamente atentos para que não sejam identificados por agressores sociais. Ao fazer uma viagem de ônibus, ao estarem dentro de estabelecimentos comerciais, ou, até mesmo, em suas casas, eles vivem uma tensão especial que exige elevação dos cuidados à milésima potência para que não sejam “pegos de surpresa”. Um assalto, para muitos, pode ser um simples furto de celular ou um, infelizmente comum, roubo de veículo, entretanto, para o policial, um desfecho muito mais triste é, quase sempre, inevitável: humilhação e mais humilhação, violência física, sexual e morte. Isso se ele der a sorte de estar sozinho, por que se estiver com a esposa e com os filhos a situação pode se agravar, como já aconteceu em diversas ocorrências que tivemos notícia.

É importante frisar que esse risco especial existe de forma independente da lotação do servidor, se na atividade-fim ou na atividade-meio da instituição. O agressor não diferencia essas circunstâncias e é o olhar dele que define o risco.

O trabalho policial em muitos pontos se equipara ao do sacerdote e ao do profissional de saúde. Tratam-se de encargos vividos 24 horas e que, em momento algum, é possível deixar de sê-los, por que simplesmente se é. É improvável que um religioso se recuse a fazer uma oração, ou que negue uma palavra de aconchego para uma mãe que sofre, simplesmente por que está fora do templo. No mesmo sentido, a postura do médico que não socorresse aquele que sofre parada cardíaca também não seria socialmente aceita, mesmo que estivesse tentando descansar escondido duas praias depois da praia mais deserta. Assim é a vida do policial. Não é possível para ele, deslocar-se até a farmácia para comprar remédio e, estando identificado, ao perceber que o estabelecimento está sendo roubado, dizer: calma, pessoal, não vou fazer nada, sou um policial que trabalha na administração.

Carteira de identificação, contra-cheque, arma de fogo, cabelos curtos, ausência de barbas e brincos, fardas que secam no varal, reconhecimento perante a vizinhança, são símbolos que congregam e identificam, para o bem e para o mal, todos os policiais. Estar atuando, talvez temporariamente, na administração do órgão, não faz desaparecerem todos esses sinais catalisadores do risco.

Com essa argumentação não queremos discordar do fato de que quem trabalha apenas na atividade-fim, nas ruas ou nas rodovias, sofre um risco maior. Contudo, esse fato não exclui o risco diferenciado e constante que também passam aqueles que trabalham eventualmente nesses locais, como é o caso dos policiais que são lotados na administração e, corriqueiramente, apoiam a atividade finalística.

Entendemos que o risco não pode ser medido simplesmente pela quantidade de tempo que se gasta no desenvolvimento de certa atividade laboral. Como se existisse um período fechado para defini-lo. Se assim fosse, esse período seria de quarenta horas semanais? Ou trinta? Se concordarmos com esse modelo, seremos levados a marcar, hora a hora, semanalmente, o trabalho realizado pelos policiais para distinguir o que oferece maior risco do que oferece menor.

Empiricamente, podemos constatar que em todos os organismos da segurança pública os policiais atuam tanto na atividade finalistíca quanto na atividade-meio. E isso não ocorre apenas no Brasil. Em todo o mundo, e desde sempre, os servidores da segurança exercem atribuições operativas, mas também precisam atuar para garantir as condições administrativas e logísticas para que os entes permaneçam vivos. Quem trabalha dentro de instituições de segurança pública sabe que os policiais lotados na atividade-fim eventualmente prestam serviço para a corregedoria, para o serviço de inteligência policial, para o ensino, dentre outros. Esse tempo, que pode durar meses, como, por exemplo, quando o policial atua em processos administrativos demissionais graves ou quando é coordenador de um longo curso de formação, deveria ser excluído do tempo considerado de maior risco?

De toda sorte, acreditamos não ser razoável medir o risco dessa forma. Todos sabemos que algumas profissiões, como a de operador de equipamentos de raio X, tem aposentadoria especial, baseada no inciso III, do § 4º, da Carta Magna, pois realizam atividades sob condições especiais que prejudicam a saúde. Será que o operador que atua 20 horas por semana perde o direito à aposentadoria especial, só o alcançando se trabalhar 40 horas semanais com  o equipamento? Até onde sabemos, aos 25 anos de contribuição eles se aposentam, independentemente da quantidade de horas laborais de sujeição ao risco.

Seria insensato querer quantificar o risco baseando-se somente na quantidade de horas em contato direto com o agente causador do perigo, pois o risco vai para além desse período laboral. Os profissionais que trabalham em contato permanente com substâncias tóxicas ou radioativas fazem jus à aposentadoria especial, não apenas pela quantidade de tempo que conviveram com a substância, mas porque o contato não é passageiro. As substâncias aderem ao corpo e se alastram na existência da pessoa. Os efeitos tóxicos permanecem atuando mesmo quando o profissional vai para casa. Com o policial, a situação é idêntica. Os efeitos incômodos da profissão não permanecem apenas enquanto o policial está na atividade. Eles acompanham o servidor ao longo de sua vida e em cada momento do seu quotidiano. Quem prendeu dezenas, e até centenas de traficantes, e, posteriormente, vai exercer alguma atividade administrativa na corporação não deixa de sofrer ameaças dos criminosos por que teria se transformado em um “policial administrativo”.

Encerrando essa discussão acerca do risco, o que podemos concluir é que o serviço policial suporta diferentes graus de risco, mas todos eles são superiores àqueles enfrentados pelo cidadão comum. Aferir o risco é uma tarefa complexa, entretanto, jamais alguém conseguirá descolar da imagem do policial a sujeição maior ao perigo que sua identidade carrega frente às demais experiências humanas, por isso acreditamos que a decisão não inovou ao determinar que, quando da solicitação do benefício em discussão, o setor de Recursos Humanos da corporação deve comprovar que os policiais exerceram atividade de risco: todos eles vivenciar o risco quotidianamente.

Uma outra importante discussão que tem pertinência com essa aconteceu ao longo da última década, sobre o direito à aposentadoria especial dos professores que desempenham atividades essenciais à educação, mas fora da sala de aula.

Depois de muitas demandas individuais e muitas construções doutrinárias e jurisprudenciais, em 2008, a Procuradoria-Geral da República pleiteou a inconstitucionalidade de um dispositivo recém acrescentado à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (§ 2º, do art. 67, da Lei 9.394/96), o qual estabelecia que, para fins de aposentadoria “são consideradas funções de magistério as exercidas por professores e especialistas em educação no desempenho de atividades educativas, quando exercidas em estabelecimento de educação básica em seus diversos níveis e modalidades, incluídas, além do exercício da docência, as de direção de unidade escolar e as de coordenação e assessoramento pedagógico”.

Na ocasião, o STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3772, entendeu que a atividade de docência não se limita à sala de aula e que outras funções exercidas pelos professores, devido à ascensão na carreira, também estão inclusas no conceito de magistério, assentando o entendimento de que as atividades mencionadas, mesmo exercidas fora de sala de aula, também gozam do benefício da aposentadoria especial.

Essa decisão nos parece sensata, visto que entendimento contrário perverteria toda a lógica das instituições de sucesso no mundo. Ora, para que uma instituição cresça em eficiência, produtividade e para que alcance bons resultados, é fundamental que os profissionais que nela trabalham percebam as falhas corporativas e tenham coragem para mudá-las. Para isso, invariavelmente, terão de assumir as posições de comando da entidade e fazer valer as mudanças necessárias para o seu progresso. Entretanto, ascender profissionalmente é, quase que necessariamente, afastar-se da prestação de serviço operacional e ocupar uma posição de nível estratégico. Esses postos de trabalho exigem muito mais reuniões, parcerias, condução dos trâmites burocráticos internos, tomada de decisões político-administrativas, do que, efetivamente, a realização das atividades finalísticas da instituição.

Entendemos que, ao se falar em instituições públicas, ascender profissionalmente não deveria ser uma opção, mas uma aspiração de todo profissional que deseja prestar um serviço de qualidade à população. Entretanto, a recente decisão do TCU provoca posturas que se chocam com essas iniciativas e esmaga o sonho de centenas de profissionais que se entregam  diariamente à construção de uma polícia melhor, na medida em que, de forma contraditória aos mais basilares princípios de funcionamento de qualquer instituição, eles se veem prejudicados por terem ascendido na carreira, pois, para fazer crescer a instituição, migraram da atividade-fim para a atividade-meio. Tal fato parece ser um completo contrassenso, especialmente porque vivemos um período de estabilização democrática, momento em que deveríamos fortalecer as instituições, garantindo aos que ainda acreditam no serviço público incentivos para melhorá-lo e não, como ocorreu, dando-lhes um balde de água fria.

No caso de a decisão permanecer, apenas hipoteticamente, pois acredito que ela será modificada, a maioria dos atuais chefes retornarão à atividade operacional pois, no caso da PRF, além de ser mais atraente do ponto de vista das realizações pessoais, o servidor não perderia o justo benefício da aposentadoria antecipada. Caso isso ocorra, quem cuidará das ações estratégicas da polícia? Os servidores administrativos não policiais? A gestão, o planejamento e a coordenação das grandes operações será terceirizado? Como planejar estrategicamente sem conhecer profundamente as nuances da atividade? Quem fará o serviço dos policiais da inteligência, ou da corregedoria, ou julgará os recursos das autuações, ou prestará à sociedade, por meio da imprensa, os comunicados oficiais do órgão? Caso não seja um policial, inauguraremos um modelo novo, ainda nunca testado.

Em se tratando de setores tão sensíveis da corporação não podemos admitir sequer que há desvio de função daqueles que saíram da operacionalidade para atuar nos bastidores. Essa realidade é conjuntural em todas as grandes instituições. Vejamos. Os juízes corregedores, ou aqueles que coordenam as escolas da magistratura ou os que são diretores administrativos do fórum, por acaso, por não estarem na atividade judicante, perdem a garantia da vitaliciedade? Promotores que não atuam nos litígios, somente coordenam áreas específicas dentro do Ministério Público, como ambiental, infância ou consumidor, têm menos benefícios previdenciários que seus pares? E os  delegados de polícia civil e federal, escrivães, papiloscopistas, agentes e oficiais de polícia militar, que, por ventura, não estejam atuando na atividade operacional de seus órgãos, não mais terão direito à aposentadoria especial?

Acredito que continuarão tendo. Por tudo que foi dito e por questões de segurança jurídica. Todos esses servidores foram convidados a ocuparem cadeiras vagas em âmbito interno e responderam positivamente ao chamamento do interesse público. O fizeram de completa boa-fé, acreditando que auxiliavam seus órgãos e que não perderiam qualquer direito por assim agirem, já que as atribuições na seara administrativa também estão prevista na lei que institui a carreira, no caso da PRF, a Lei 9.654. Dar nova interpretação à lei, mudando a contagem do tempo em desfavor do servidor é um atentado à boa-fé e à estabilidade das relações jurídicas. É querer fazer a banda tocar pra trás, quando sabemos que não é nesse sentido que ela deve caminhar.

Para finalizar, entendo ser importante esclarecer que, na fundamentação de sua decisão, o TCU, várias vezes, citou o julgamento da ADIN 3.817-6, no qual o Supremo entendeu que a atividade estritamente policial, a que se refere a LC 51/85, não diz respeito apenas ao cargo em si, mas ao efetivo desempenho de atividades em condições de risco. Ocorre que, nessa ocasião, o STF julgava uma caso muito particular, pois tratava-se de um policial que tinha sido cedido para outro órgão, lá permaneceu anos, e queria, no momento da aposentadoria, se favorecer do benefício. Essa situação é completamente diferente da dos policiais que hoje atuam em âmbito administrativo nas polícias. Usá-la como parâmetro para o futuro é reduzir as complexidades que orbitam o assunto a um caso muito específico, incapaz de representar a generalidade do tema.

Finalizando, acreditamos que no cesto onde repousam as piores decisões não estão apenas as injustas ou mal fundamentadas. Lá, ganham destaque aquelas que conseguem destruir paixões profissionais e até instituições. E essa decisão, no meu ponto de vista, tem potencial para engordá-lo, visto que apunhala sonhos de pessoas que tanto tem batalhado pela segurança viária nesse país, que perde, anualmente, sessenta mil vidas no trânsito.

Fabrício Rosa é policial rodoviário federal e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da PRF.

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