Em meio aos questionamentos sobre a lei seca, que hoje completa quatro anos, avançam no Senado as discussões para endurecer as regras que proíbem os motoristas de beber antes de dirigir. As alterações já foram aprovadas na Câmara dos Deputados, mas, na opinião de especialistas, as propostas que passaram pela Casa mantêm mecanismos que favorecem a impunidade. Os senadores terão agora a oportunidade de tornar a lei seca mais rígida e de resgatar a credibilidade da legislação. Relator do projeto, o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) contou ao Correio que vai apresentar seu parecer sobre o assunto até o fim desta semana.
O texto aprovado pela Câmara dos Deputados em abril deste ano representou um aprimoramento da lei, mas a alteração não foi suficiente para acabar com as brechas legais que impedem a sua correta aplicação. O projeto aprovado manteve os índices de alcoolemia para criminalizar a conduta dos motoristas, ou seja, só é considerado crime o ato de dirigir com mais de seis decigramas de álcool por litro de sangue.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, estabeleceu que o bafômetro é o único meio de prova para que um motorista seja processado criminalmente por dirigir alcoolizado. Como a Constituição não obriga o cidadão a produzir prova contra si, o condutor pode se recusar a soprar no aparelho. Assim, segundo juristas, a lei seca perdeu sua eficácia. Se o Congresso mantiver o índice de seis decigramas de álcool por litro de sangue, os Detrans vão continuar a esbarrar em motoristas embriagados que se recusam a fazer o teste do bafômetro.
A grande mudança do projeto aprovado na Câmara dos Deputados foi a inclusão de novos meios de prova para constatar a embriaguez dos condutores. A Lei Federal n° 11.705/08, conhecida como lei seca, previa a realização do exame do bafômetro como única forma de constatar a infração. O novo texto, apesar de manter o criticado índice de alcoolemia, incluiu outras maneiras de checar a embriaguez dos motoristas. Com o projeto aprovado pelos deputados, os agentes de fiscalização poderão usar provas testemunhais, imagens, além de executar exames clínicos para a constatação de sinais, como o hálito etílico e a coordenação motora comprometida.
O senador Ricardo Ferraço agora vai decidir se propõe novas mudanças em seu parecer. Em abril, ele deu entrevistas defendendo a tolerância zero para a bebida entre os motoristas. Mas, agora, evita antecipar o conteúdo do texto. “Estou tendo cuidado de conversar com o governo, para que a decisão que tomarmos tenha efeitos reais depois. Vou apresentar o parecer na Comissão de Constituição e Justiça e ele é terminativo, ou seja, não precisa passar pelo plenário”, explica o senador. “Estamos debatendo várias possibilidades para pôr um fim nas brechas jurídicas e, consequentemente, acabar com a impunidade”, acrescenta o parlamentar. Depois de passar pela CCJ do Senado, o projeto volta para a Câmara e a ideia é discutir com os deputados para que aquilo que for aprovado agora não sofra novas modificações.
Crítica
O jurista Paulo Emílio Catta Preta, conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil no DF (OAB-DF), se considera um “crítico voraz” da lei seca. “Não pela proposta da legislação, mas pela redação ruim”, justifica ele. O especialista afirma que a legislação foi elaborada e apresentada em um momento de clamor popular e, portanto, passou às pressas pelo legislativo, sem um debate aprofundado. “A lei seca já nasceu com problemas. O texto diz que só existe crime quando houver a comprovação de seis decigramas. Mas nenhuma testemunha no mundo consegue apurar a embriaguez com essa precisão sem que seja feito um teste de bafômetro, que não é obrigatório.”
Além de defender alterações na lei para que ela se torne efetiva, com a retirada do índice de alcoolemia, Paulo Emílio também sugere o aumento de penas para homicídio culposo no trânsito. “Existe um debate sobre dolo eventual ou culpa consciente. Aumentando a pena de homicídio culposo ao volante para 12 anos, a sociedade passa a ter uma punição razoável e proporcional para algo tão grave, quando o motorista estiver embriagado ou em alta velocidade”, acrescenta.
O diretor-geral do Detran, José Alves Bezerra, reconhece que o julgamento do STJ facilitou a defesa dos motoristas, mas garante que, antes mesmo dessa decisão, as equipes já tinham dificuldades em encontrar pessoas dispostas a soprar o bafômetro. “Acho que o DF é o lugar com menos pessoas dispostas a fazer o teste. Mas a recusa não significa a completa impunidade. Entre os abordados, 90% das pessoas se negam a fazer o bafômetro, mas ainda assim respondem a um processo administrativo”, afirma.
Descrédito
Na edição de ontem, o Correio mostrou que as normas que preveem punição mais rigorosa para quem insiste em dirigir depois de beber não amedrontam mais os motoristas do Distrito Federal. Levantamento feito em cinco unidades da Federação revela que a capital do país é o local onde os condutores mais são flagrados bêbados ao volante. Além disso, 90% se recusam a fazer o teste do bafômetro. Os números, segundo especialistas, são um indicativo de que a lei está caindo no descrédito.
Revisão legal
A comissão de juristas formada no Senado para discutir alterações no Código Penal Brasileiro já propôs o aumento da pena para motoristas acusados de homicídio culposo (sem a intenção de matar) para 11 anos de cadeia. A penalidade para homicídio culposo no trânsito hoje é detenção de dois a quatro anos, além da suspensão da Carteira Nacional de Habilitação.
Ação corre no STF
Além do debate com relação às brechas jurídicas da lei seca, também tramita na Justiça uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra a legislação. Em 2008, logo depois da aprovação do texto, a Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel) recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir a derrubada da lei. As discussões avançaram somente este ano, com a realização de uma audiência pública no STF. Mas não há previsão de o assunto ser analisado em curto prazo, especialmente diante da expectativa pelo julgamento do caso do mensalão.
A Abrasel alega que a lei seca é inconstitucional porque comprometeria os direitos de livre circulação dos cidadãos. A entidade questiona, inclusive, o trecho da lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas à beira das rodovias federais ou em terrenos contíguos à faixa de domínio.
O vice-presidente da Abrasel no DF, Rodrigo Freire, espera que a lei seja derrubada pelo STF. Segundo ele, a associação não é contra iniciativas que evitem o uso excessivo de álcool por motoristas de veículos. “É evidente que essas iniciativas geram resultado benéfico para toda a sociedade. Mas nos posicionamos contra a questão arbitrária dessa legislação. Alguns governos têm colocado os bares e restaurantes como inimigos, e esse não deveria ser o foco da questão”, afirma. “Além disso, a lei trouxe muitos excessos, como criminalizar um motorista que tem mais de seis decigramas de álcool por litro de sangue, mesmo que ele não cometa nenhuma besteira no trânsito”, acrescenta.
Fonte: Correio Braziliense