Duas décadas depois, acordo internacional faz militares pedirem desculpas a família de jovem morto em treinamento. Documento obriga o país a investigar 22 casos semelhantes
Vinte e dois anos depois de perder Márcio Lapoente da Silveira, que morreu durante um treinamento de selva na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ), Carmen Lúcia, mãe do cadete, recebeu um pedido de desculpas do Exército ontem. O gesto faz parte de um acordo firmado entre o governo brasileiro e a família do jovem — por intermédio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) — no qual o Estado reconheceu sua responsabilidade pela “violação dos direitos à vida e à segurança” de Lapoente. O caso do rapaz remete a um problema frequentemente denunciado no país: maus-tratos e tortura em cursos de formação militar. Nas contas oficiais do Exército, 31 homens já perderam a vida “em consequência de acidentes em instrução”, de 1944 a 2011.
Pelo menos quatro nomes de vítimas, incluindo o de Lapoente, foram inscritos em uma placa descerrada ontem durante a cerimônia de pedido de desculpas realizada na Academia das Agulhas Negras. Uma segunda placa inaugurada lembra que a homenagem póstuma se deve a um acordo firmado perante a CIDH, em virtude do caso Lapoente. O documento assinado obriga o Brasil a investigar outras 22 mortes em situação semelhante. Para a mãe do cadete, o desfecho da busca por justiça traz um sentimento ambíguo. “Foi uma vitória amarga. Lutamos para que os culpados fossem punidos. Mas como eu aceitei o acordo que foi proposto, fui até lá para ouvir as desculpas. O que pedi, no meu pronunciamento, foi a humanização dos treinamentos”, conta a senhora de 67 anos.
Antes mesmo da missa de sétimo dia, lembra Carmen, a família já estava empenhada em descobrir a verdade sobre a morte do filho. Na madrugada de 9 de outubro, por volta das 4h50, Lapoente saiu com 283 cadetes para o treinamento na selva, realizado nas montanhas de Resende. Cerca de uma hora depois, o rapaz teria começado a passar mal. O tenente Antônio Carlos de Pessoa ignorou a situação, obrigando-o a continuar. Mais tarde, com Lapoente carregado pelos colegas, o oficial mandou os militares deixá-lo ao chão, momento em que desferiu chutes por várias partes do corpo, sustenta a família. Ao ficar desacordado, o cadete foi levado aos cuidados médicos e, depois, transferido para o hospital, onde chegou morto.
A instituição de saúde chegou a levantar a possibilidade de Lapoente ter morrido em função de meningite, o que impediu os pais de verem o corpo do filho assim que chegaram ao hospital. Laudos cadavéricos apontaram que o rapaz foi vítima de choque térmico devido aos exercícios e ataque cardíaco. Os documentos registraram ainda sinais de agressão. A família ingressou na Justiça com ações de reparação, mas não obteve êxito.
Investigações militares chegaram a condenar o oficial Pessoa, responsável pelo treinamento, a três meses de prisão com sursis (suspensão condicional da pena) de dois anos pelo crime de “violência contra o subordinado”. Um processo ainda corre na 16ª vara Federal do Rio de Janeiro com pedido de reparação pecuniária e, segundo o acordo costurado pela CIDH, deve ser observado para que o Estado repare materialmente a mãe de Lapoente.
Pedido de extinção
Um mandado de segurança chegou a ser impetrado em setembro no Supremo Tribunal Federal pedindo a extinção do acordo feito pelo governo brasileiro com a família de Lapoente por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O autor do pedido, um militar na condição de cidadão, diz que o acordo é uma “afronta à soberania nacional” e “uma mácula na honra e na dignidade do Exército, declarando-o torturador e assassino”. O ministro Celso de Mello, entretanto, arquivou o mandado de segurança no último dia 3.
Fonte: Correio Braziliense