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maio/2013

Beber, dirigir, matar. Por que insistir no erro?

O aumento no rigor da lei seca e da fiscalização sobre o condutor se mostra ineficiente para coibir tragédias provocadas por pessoas alcoolizadas que insistem em assumir o volante. O mau hábito persiste motivado pela sensação de impunidade gerada, em parte, pela cultura brasileira de desvalorização dos crimes de trânsito. Historicamente, eles são entendidos como fatalidades, mesmo no caso como o que tirou a vida de Janice dos Reis Bonfim, de 18 anos, no último domingo.

Desde que a lei seca entrou em vigor, em junho de 2008, 20 motoristas, em média, são flagrados alcoolizados diariamente no Distrito Federal. Professor de medicina legal da Universidade de Brasília (UnB), Malthus Galvão garante não haver dúvidas sobre os efeitos nocivos do álcool na aptidão para guiar um veículo. “O motorista perde a capacidade de julgamento”, sentencia (leia ilustração). De 2008 até março, a fiscalização aplicou 37.436 multas. Nesse período, 15.816 condutores acabaram punidos com a suspensão do direito de dirigir por um ano.

Ainda assim, é pouco, garante o especialista em segurança no trânsito e presidente do Instituto de Segurança de Trânsito (IST), David Duarte. “A fiscalização é ineficiente. Há três anos, o IST fez uma pesquisa na qual 120 mil pessoas admitiram dirigir depois de beber durante o fim de semana. Mas, no mesmo ano, em 365 dias, somente cerca de 10 mil foram flagradas embriagadas”, compara Duarte.

Se a punição no âmbito administrativo fica aquém do razoável, quando os casos graves chegam ao Judiciário, não é diferente. O advogado criminalista Técio Lins e Silva cita uma pesquisa feita há 30 anos, segundo a qual apenas 5% dos delitos de trânsito culminavam com a condenação judicial do autor. “Do ponto de vista histórico, esse estudo vale como se fosse ontem. Faz parte da cultura brasileira não valorizar o acidente de trânsito. Somente após a lei seca isso começou a mudar”, afirma.

Apesar da indignação de parentes de vítimas em relação às punições mais brandas nos casos de acidentes graves ou fatais, Lins e Silva destaca que as decisões do Judiciário refletem a cultura nacional. “O juiz é igual a todos nós. Tem a cabeça da média das pessoas. Por exemplo, há 30 anos, ninguém conseguia uma condenação contra o marido que espancava a mulher. A sociedade mudou, e as decisões também”, compara.

“Super-homem”

Diretor-presidente da Escola Nacional da Magistratura, Roberto Bacellar considera a lei seca um passo importante para mudar a cultura em relação a alcoolemia ao volante. “A mudança está em curso. Ninguém mais aceita que esses fatos (acidentes fatais) aconteçam e se passe a mão na cabeça do cidadão. Essa evolução da sociedade vai se refletir no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, que é o aplicador das leis”, acredita.

Para Bacellar, mesmo com a nova legislação, aprovada em dezembro do ano passado (leia O que diz a lei), os réus de crimes de trânsito só devem ir a júri popular se o Ministério Público conseguir provar que a pessoa assumiu ao risco de provocar a morte de alguém ao assumir o volante alcoolizado. “Essa é uma questão técnica, e cada caso é cercado de circunstâncias que o MP precisa reunir e provar que a pessoa agiu com dolo”, explica.

No domingo, o motorista Kelvin Martins Inácio, 20 anos, foi submetido a exames no Instituto de Medicina Legal (IML) após atropelar duas jovens, de 14 e 18 anos, e matar a mais velha. O teste comprovou a embriaguez do condutor, que dirigia um Monza e atingiu as vítimas no Condomínio Sol Nascente, em Ceilândia. Kelvin tentou fugir do local, mas bateu em um poste. Acabou preso.

Para a doutoranda em psicologia e mestre em política social Andrea dos Santos Nascimento, a insistência dos motoristas em dirigir alcoolizados, apesar das tragédias e da proibição legal, tem relação com o que ela chama de cultura do super-homem. “É aquele pensamento de “nada irá acontecer comigo. Não vou cair em blitz, não vou bater o carro, sei o que estou fazendo, dirijo melhor quando bebo”. Mas entre a fantasia e vida real existem pessoas, idosos, gestantes e crianças”, adverte.

Aliado a isso, Andrea afirma que a legislação, apesar de boa, é frouxa. Nesse caso, a população tem a certeza de que ela não será punida. “O sentimento geral é de que eu posso beber e dirigir. Se acontecer alguma coisa, não vou produzir prova contra mim e vai ficar tudo bem. Muita gente ainda se safa”, denuncia. Apesar das críticas, o subcomandante do BPTran, major Wagner Freitas, ressalta que a fiscalização ocorre todos os dias da semana. “Se a fiscalização não fosse eficaz, haveria menos flagrantes, mas tivemos um aumento de 140% no primeiro trimestre do ano”, cita.

Análise da notícia

Basta de penas brandas

A lei, por si só, não basta. Enquanto a regra fica no papel e a vigência dela não é cobrada nas ruas pelos agentes de trânsito, a principal consequência é a perda da credibilidade. Sem punição, o motorista faz o que quer: acelera demais, não usa o cinto de segurança, estaciona onde quer e não para diante da faixa de pedestres. No caso da embriaguez ao volante, o problema esbarra não só na ineficiência da fiscalização, mas na dificuldade de manter esse infrator atrás das grades, mesmo se ele acaba envolvido em acidente fatal.

Por mais que o flagrante esteja caracterizado por meio de provas técnicas, o Judiciário segue a cultura de tratar como uma fatalidade o motorista que desrespeita a lei seca e mata no trânsito. Mesmo que os entendimentos da Polícia Civil e do Ministério Público sejam de homicídio doloso — nesse tipo de situação, o condutor assumiria o risco de matar? —, pouquíssimos casos terminam em condenações maiores. Até quando continuará sendo comum o cumprimento de penas brandas, restritas a serviços à comunidade e ao pagamento de cestas básicas? Esse tipo de punição não serve para a sociedade.

O que diz a lei

O artigo 165 fixa que é infração gravíssima dirigir sob a influência de álcool ou de substância psicoativa. A desobediência resulta em multa de R$ 1.915,40 e na suspensão do direito de dirigir por um ano. Os reincidentes pagam a multa em dobro. Dirigir com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência resulta em pena de detenção de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir. O crime pode ser caracterizado por concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar ou sinais que indiquem alteração da capacidade psicomotora. As provas podem ser obtidas mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, testemunhas ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.

Fonte: Correio Braziliense

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