Em entrevista ao iG, Regina Miki defende lei que proíbe policiais de usarem armas letais contra suspeitos em fuga
Sancionada pela presidente Dilma Rousseff em dezembro, a Lei 13.060, que limita o uso de armas de fogo por policiais em perseguições e blitze de trânsito, sequer foi regulamentada, mas já tem gerado a proliferação de críticas por parte de legisladores ligados a corporações militares em todo o País. “Dilma sanciona lei que favorece foras da lei. Que país é este?”, postou o vereador fluminense Carlos Bolsonaro em sua página no Facebook, apoiado por milhares de seguidores.
A seu comentário se juntaram textos de deputados estaduais e federais.”Parece-me uma contradição”, disse o deputado federal João Campos (PSDB-GO); “pelo amor de Deus, onde vamos parar?”, escreveu o também deputado federal Eduardo Bolsonaro; “um desserviço à população brasileira”, afirmou o deputado estadual Sargento Rodrigues (PDT-MG).
Mas, em um País onde a letalidade policial figura entre as maiores do mundo, a secretária nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, vê a medida como essencial para diminuir a violência no Brasil. Mais do que isso: para ela, é a única maneira de se dar transparência às ações policiais, bem como um primeiro passo para unificar os procedimentos técnicos das corporações espalhadas no País.
“O policial é um agente do Estado, a quem cabe obrigações e direitos. Assim, é preciso impor limites às suas ações para evitarmos abusos, execuções”, afirma. Leia entrevista a seguir:
iG: Mesmo antes da sua regulamentação, a lei vem sendo chamada por alguns legisladores conservadores, como aqueles ligados a setores de segurança e da indústria de armas, como uma forma de “defender bandidos” ou de “fragilizar as polícias”. O que a senhora pensa a respeito?
Regina Miki: O policial é um agente do Estado a quem cabe obrigações e direitos. A sociedade precisa ter seus direitos garantidos e é justamente ele quem trabalha para protegê-la. Assim, na sua ação, assim como qualquer outro profissional, ele tem limites. O governo não quer fragilizar a instituição ou o policial, longe disso. Mas o maior bem do Brasil é a vida, ninguém pode morrer. O que queremos com essa lei é dar transparência à atividade dos agentes e valorizar o bom policial. Mas nunca, jamais, podemos defender o bandido travestido de polícia. O uso diferenciado da força no Brasil, já aplicado no mundo inteiro, não pode ter uma leitura de que estamos fragilizando o policial na rua. Pelo contrário, estamos adequando o policial ao Estado democrático em que ele vive.
iG: É uma forma de evitar que policiais ajam como justiceiros…
Regina: Evidente. A imprensa cansa de noticiar, quase que diariamente, que um inocente foi baleado durante uma perseguição de policiais a bandidos. Avaliemos com sinceridade: até que ponto justifica atirar em uma pessoa em fuga, mesmo quando culpada? O policial não tem o direito de colocar em risco a vida daquela pessoa, existem leis pra julgá-lo. Não justifica colocar a vida de nenhuma pessoa em risco só porque há uma fuga, até porque o suspeito tem o direito de fugir – cabe ao Estado detê-lo. Mesmo quando precisar usar a arma de fogo, quando há risco de vida, é preciso ser transparente sobre o uso para a sociedade. Eu não posso permitir que alguém tire a vida de outrem, porque passo a ser um justiceiro. E, na realidade, o policial é um promotor da justiça, não um carrasco.
iG: Como uma lei vai mudar a cultura das polícias militarizadas do País?
Regina: Não vai. Se lei mudasse cultura, já teríamos uma sociedade totalmente diferente no Brasil. É mais fácil derrubar um muro do que uma cultura. Entretanto, a lei significa uma corregedoria mais atuante, uma defensoria mais forte, o Ministério Público fiscalizando melhor as polícias. Quando você cria uma lei, passa a ter parâmetros. Se não existem critérios estabelecidos, fica difícil a fiscalização, punição ou qualquer coisa que seja. A lei traz parâmetros, vem para falar que usar arma letal em determinadas situações é crime. E a polícia, que tem um papel fundamental de defesa da sociedade, tem de ser cumpridora das leis, não pode trocar de lado.
iG – A Lei 13.060/14 obriga policiais a usar armas não-letais em casos específicos, como em perseguições e blitze de rua. Mas por que não especifica quais os armamentos considerados “não letais”?
Regina: Primeiramente, é preciso fazer um resgate histórico sobre o tema. Esta lei vem para deixar muito claro o que uma portaria ministerial, de dezembro de 2010, já previa. Ela dizia que, ao passarmos a reaparelhar as polícias brasileiras, deveríamos observar o uso de armamentos e equipamentos não letais por parte das corporações. Não elencamos na lei ou na portaria os equipamentos porque podem surgir outros com o passar dos anos. O caminhão de jato d´água, por exemplo, um equipamento de dissuasão de um conflito, não existia em 2010, quando fizemos a portaria. Ou seja, sem especificar as armas, a lei permite que novas tecnologias sejam acopladas a ela. Hoje, na lista de armas não-letais podempos elencar o gás de pimenta, o gás de efeito moral, o próprio equipamento de proteção, a arma de condutividade elétrica, a tonfa (o popular cassetete). Há varias formas de se utilizar esses equipamentos, o que não significa que elas sejam substitutivas ao armamento letal, mas, sim, uma alternativa para quando o policial vê que não existe risco de vida para ele, para o suspeito e para a sociedade a qual ele deve proteger.
iG: A quem cabe a compra, distribuição e o treinamento para o uso dessas armas?Regina: Cabe ao governo federal, mas também aos Estados e municípios. Explico: a União pode entregá-los por meio de um programa especifico, como ocorreu na cidade de São Paulo no controle das cracolândias. Na ocasião, expusemos isso em uma normativa do programa, fizemos a aquisição e as entregamos. O Estado também pode trazer um projeto para aprovarmos, ao mesmo tempo em que ele próprio pode adquiri-las, bem como os municípios. Agora, é obvio que queremos que os policiais tenham armamento menos letal para que possam usá-lo dependendo da situação. Então, se preciso, faremos a aquisição, sim.
iG:As polícias do País já possuem conhecimento no uso dessas armas?
Regina: Eu não posso garantir que 100% dos policiais tenham a arma de choque. A tonfa, no entanto, está com todos eles, já que é algo corriqueiro há muito tempo nos batalhões, assim como os treinamentos de artes marciais. O uso de gás de efeito moral, entre outros semelhantes, também já é bastante difundido. Agora, a arma de choque não é tão usual, o que precisa mudar, pois ela é essencial em algumas ações. No policiamento comunitário, por exemplo, obrigatoriamente o PM tem de portar essa arma. É o dever de se fazer o uso diferenciado da força, de não matar e não morrer. Afinal, o policial não tem permissão para matar ou imunidade para ser morto.
iG: Em São Paulo, o treinamento da PM é de cerca de dois anos; ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro, ele é de apenas quatro meses. Não seria necessária uma padronização no treinamento das polícias?
Regina: A necessidade da mudança na profissionalização é essencial. Mas a formação dos policiais diz respeito aos Estados, cada um legisla de uma forma. A Secretaria Nacional de Segurança Pública tem, sim, um modelo de educação profissional que vem sendo aperfeiçoado ao longo dos tempo. No entanto, esta matriz não pode ser imposta aos Estados, no máximo pode servir como uma cooperação técnica. Por esse motivo, queremos alterar a Constituição para que a União possa passar a legislar sobre normas gerais, inclusive em relação ao tempo de formação. É necessária uma normatização geral. Para um país como o nosso, isso é de extrema de importância.
Por que a polícia brasileira é tão violenta?
Regina: São vários fatores para isso ocorrer, é complicado. Mas começa pela própria formação dos policiais, da capacitação. Além disso, existe um ponto crucial que é a cultura, não só a militar, como da própria sociedade da qual os policiais vêm. E a sociedade brasileira é muito violenta. É preciso ir além: trabalhar a mudança cultural dentro da própria sociedade.
Especialistas consultados pelo iG temem a banalização no uso dessas armas chamadas não-letais justamente pelo fato de elas terem a possibilidade de matar. Como o governo avalia isso?
Regina: De fato, não existe arma não letal. É uma mentira, pois até um pau, uma pedra podem ser letais. Mas é preciso avaliar que entre o choque e o projétil, a chance de morrer de choque é bem menor do que a do projetil. Buscamos minimizar os risco, já em que toda ocorrência policial há riscos. Temos de minimizar tanto para a sociedade quanto para o criminoso e ao policial. Em seu juramento, o policial já afirma que seu dever é fazer prevalecer a vida da sociedade, mas também a vida de quem está cometendo crime e a sua própria vida. Até porque, legalmente, não existe pena de morte, o agente não tem autorização de matar a não ser que sua vida esteja realmente ameaçada. Temos de dar condições ao policial para fazer cumprir essas normas, dando a ele respaldo para isso com armamentos de menor letalidade.
Fonte: Último Segundo