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nov/2012

Fraude no exame de direção

De 14 autoescolas consultadas pelo Correio, cinco oferecem menos aulas práticas do que o permitido em lei. Basta, para isso, que o aluno diga que sabe dirigir. Detran admite que é difícil punir esse tipo de atitude

A lei é clara: para tirar a carteira de motorista, o aluno precisa fazer, no mínimo, 20 horas/aula de direção, no caso das categorias A e B, e 15 horas/aula, para C, D e E. Mas, no Distrito Federal, essa determinação é ignorada por alguns centros de formação de condutores (CFCs), que insistem em descumprir as normas do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). O Correio esteve em 14 estabelecimentos — no Gama, em Planaltina e em Sobradinho — e descobriu que cinco deles, todos localizados no Setor Central do Gama, aceitam que alunos façam menos aulas práticas do que o permitido pelo conselho, órgão máximo do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) (leia diálogos).

Após receber a denúncia, o Departamento de Trânsito (Detran) garantiu que irá investigar as seguintes autoescolas: Veja, Tipo, Pointer, Visão e Via Brazil. No entanto, adianta que somente pode puni-las caso os fiscais do próprio órgão consigam flagrar o momento exato da fraude. Os números do departamento apontam que, de janeiro a outubro deste ano, 15 dos 110 centros de formação de condutores da capital do país acabaram descredenciados, e 28 receberam advertências por não executarem algumas das resoluções do Denatran em vigor, incluindo a de nº 168, que estipula o número mínimo de aulas práticas. Atualmente, há 50 processos que correm abertos.

A reportagem apurou que, ao pedir o orçamento, o cliente que informa à autoescola já ter prática no trânsito, mesmo sem possuir a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), é dispensado do mínimo de aulas exigido pela resolução. Os funcionários dos centros de formação de condutores chegam até mesmo a concordar que o candidato faça apenas cinco das 20 aulas. Esse é o caso da empresa Visão, que fica no mesmo prédio da Pointer, autoescola que, por telefone, admitiu a irregularidade. No mesmo setor, mas em outro edifício empresarial, outros três estabelecimentos também ignoram a legislação. São eles: Via Brazil, Veja e Tipo.

Nas conversas, as empresas explicam como fazem para driblar a fiscalização do órgão nacional de trânsito. “Colocamos no sistema que o aluno fará 20 aulas só para constar ao Detran. Aí, ele não precisa praticar todas essas aulas, mas tem que assinar os documentos para dizer que fez as aulas. Eu mesma fiz sete aulas antes do teste prático”, detalhou a atendente da Veja. Os centros de formação visitados pelo Correio chegam até mesmo a fazer descontos ou facilitar o pagamento para os candidatos que desrespeitam a legislação de trânsito.

Fiscalização frouxa
Esses estabelecimentos se apoiam na precária fiscalização do Detran. O próprio órgão admite que é difícil punir as autoescolas que não seguem a norma. Nem mesmo a resolução que especifica a quantidade mínima de aulas práticas, a de nº 168, estabelece as sanções que deverão ser impostas aos centros de formação que não executarem a determinação. O Denatran afirma que as punições devem ficar a cargo de cada unidade da Federação.

O Detran alega que a forma de controle de frequência das aulas de direção usada no DF ainda é ultrapassada. Desde 2010, o Conselho Nacional de Trânsito exige que cada departamento adote o sistema de identificação biométrica, que passaria a monitorar os alunos durante aulas práticas por meio de digitais ou até mesmo pela íris dos olhos. O modelo de impressão digital já é usado nas aulas teóricas para impedir esse tipo de fraude. No entanto, aqui, o Detran ainda não aderiu ao método para identificar os candidatos que fazem a parte prática. “Ainda não temos previsão de quando começaremos a usar esse método nas (aulas) de direção”, frisou o chefe substituto da Diretoria de Controle de Veículos e Condutores (Dircon) do órgão, Israel Barbosa Fritz.

A punição para quem descumprir a lei também é direcionada aos instrutores que desobedecerem à determinação do Conselho de Trânsito. Caso o professor seja flagrado cometendo a fraude, ele também acabará penalizado. Na primeira vez que for pego, pode ser suspenso por 15 dias. Se houver reincidência, o acusado passa a ter 30 dias de afastamento. Na terceira vez, o instrutor é mantido longe da função por 60 dias. Após isso, ele pode perder o credenciamento e ficar impedido de dar aulas em qualquer autoescola. Este ano, quatro desses profissionais acabaram suspensos e 13 receberam advertências. O Correio conseguiu contato, no fim da tarde de ontem, com os responsáveis de duas das cinco autoescolas. A Tipo e a Pointer negaram a fraude.

Passo a passo

Veja o que é preciso fazer para tirar a CNH:

1 – Solicitar ao Detran mais próximo de sua residência a abertura do processo de habilitação. Para isso, é necessário ser penalmente
imputável, saber ler e escrever, possuir RG e CPF.

2 – Realizar os exames psicológico e de aptidão física e mental.

3 – Passar pelo curso teórico-técnico e, depois, ter 70% de
rendimento na prova de 30 questões.

4 – Concluir pelo menos 20 aulas de prática de direção
veicular e, enfim, passar no teste prático.

Gustavo Moreno/CB/D.A PressTeste prático de autoescolas: irregularidade comprovada por meio de diálogos com os atendentes dos centros de formação de condutoresGustavo Moreno/CB/D.A PressA Veja admite que o aluno não precisa cumprir carga horária exigidaAlto índice de reprovação

Para Israel Fritz, do Detran, o alto índice de reprovação das provas do departamento pode estar relacionado à prática dessa fraude. Levantamento do órgão mostra que a média anual de pessoas que são submetidas ao exame de direção e que não conseguem passar pelo crivo dos examinadores chega a 36%. Em 2011, a aprovação ficou em 62% — 108.553 pessoas passaram pela prova prática. De janeiro a setembro deste ano, 85.505 candidatos fizeram o teste de direção, desses, 55.069 foram considerados aptos. Por mês, em média, 10 mil exames práticos são realizados pelo Detran. “A fraude contribui para esse índice, pois com a prática dele (do aluno), há uma formação menos adequada”, acredita Fritz.

Para que esse índice de reprovação diminua, o Detran estabeleceu a seguinte regra: as autoescolas que aprovam menos de 60% dos alunos em um período de um ano devem ser penalizadas pelo órgão. Segundo Israel, os centros de formação que apresentam esse quantitativo não conseguem renovar o credenciamento para funcionar enquanto não passarem por um curso de atualização oferecido pelo próprio departamento de trânsito.

Formação inadequada
Especialista em trânsito e doutor em políticas públicas de transportes pela Universidade de Brasília (UnB), Artur Morais acredita que a maioria dos condutores que hoje enfrenta as ruas do DF não passou por uma formação adequada. Para ele, esse problema aparece desde as aulas teóricas. “As pessoas que primeiramente passam pelas escolinha do Detran aprendem a passar na prova, mas não a aplicar tudo o que aprendeu no trânsito. Os candidatos só decoram. Aliado a isso, as pessoas não fazem a quantidade de aulas estipuladas por lei. Os centros de formação estão brincando com a formação”, avalia Morais.

Ele afirma que o número expressivo de reprovações é reflexo do modelo de aprendizado desses candidatos. “A nossa formação de condutor tem que vir desde a escola, onde devíamos aprender a como se comportar no trânsito. Não existe formação para ser condutor. O que vemos no trânsito é resultado desse erro”, acrescenta. O especialista também critica as sanções impostas aos estabelecimentos que desrespeitam a resolução do Denatran. “As punições têm que ser mais severas. Multa alta e descredenciamento”, destaca.

A inspeção falha do Detran também é alvo de críticas de Morais. “Esse tipo de denúncia acontece há dois, três anos. E nada foi feito. Se esse tipo de fraude continua é porque o órgão de fiscalização está deixando solto. Pode ser que o sistema biométrico instalado nas autoescolas diminua esses casos. Os alunos teriam que passar pela identificação no início e no fim das aulas práticas”. (TL)

O que diz a lei

O artigo 13 da Resolução nº 168 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) estabelece que os candidatos que queiram obter autorização para conduzir ciclomotores (ACC), Carteira Nacional de Habilitação (CNH), adição ou mudança de categoria, só poderão prestar exame de Prática de Direção Veicular depois de cumprida a seguinte carga horária de aulas práticas: obtenção da ACC com mínimo de 20 horas/aula; da CNH, com o mínimo de 15 ou 20 horas/aula por categoria pretendida; da adição de categoria, com o mínimo de 15 horas/aula em veículo da categoria na qual esteja sendo adicionada; da mudança de categoria com o mínimo de 15 horas/aula em veículo da categoria para a qual esteja mudando. As autoescolas que forem pegas desrespeitando a resolução recebem punições. O Detran de cada estado estabelece como esses centros de formação de condutores serão penalizados. No caso do Distrito Federal, as autoescolas são obrigadas a fecharem as portas, pois
perdem o credenciamento.

 

Somos “barbeiros”

RENATO FERRAZ

Em relação à mobilidade urbana, é comum na Europa instituições públicas e universitárias estudarem com afinco a razão da existência de certos fenômenos — como o uso do automóvel e sua relação com a mortandade urbana. Aqui, passa-se a impressão de que os mesmos conceitos, independentemente do tempo em que eles existam e onde foram estabelecidos, são imutáveis. Como achar que, em função do desempenho dos pilotos brasileiros em categorias como F1, somos os melhores motoristas do mundo.

Bobagem. O Reino Unido sempre teve excelentes pilotos, mas as autoridades do Departamento de Transporte de lá acabam de divulgar um levantamento no mínimo curioso: 42% dos acidentes automobilísticos em 2011 tiveram como causa falhas dos condutores em “olhar devidamente”; 21% por “erros de julgamento” sobre o caminho ou velocidade dos outros motoristas; e 16% por descuido. Em suma: quase 80% de batidas e capotamentos são resultados de uma certa “barbeiragem”, resultado de relaxamento do condutor.

E por aqui, o que as autoridades sabem sobre essas e outras “barbeiragens”? Por que os condutores são tão mal preparados, a ponto de nem sequer experimentarem situações reais de perigo antes de terem o direito de pilotar? Para que saber como reagimos diante de situações de perigo, comprovadamente diferente de pessoa para pessoa? Que interessa a vida do condutor, se ainda nem exigimos condições de segurança nos carros (air bag ou ABS) e nas estradas (olho-de-gato ou guardrail)? Habilitação para quê?

Fonte: Correio Braziliense

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