Por *Frei Betto
Luiz Inácio Lula da Silva é pernambucano de Garanhuns, onde nasceu, segundo registra sua certidão de batismo, a 27 de outubro de 1945. Na opinião dos irmãos mais velhos, esta teria sido a data do batismo. A de nascimento, 6 de outubro. O fato é que, neste outubro, ele ganha presente duplo: será votado para presidir o Brasil dia 6, e para assumir a presidência dia 27.
O apelido “Lula” foi incorporado ao nome em 1982, por razões eleitorais. Penúltimo dos oito filhos de Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindú, e Aristides Inácio da Silva, passou a primeira infância nos oito hectares de terra onde a família plantava feijão, milho e mandioca para consumo próprio.
Quando Lula completou 7 anos, em 1952, mãe e filhos viajaram 13 dias de “pau-de-arara” do Nordeste a São Paulo, dividindo a pequena ração de farinha, queijo e rapadura. Vieram ao encontro do pai, que trabalhava como estivador no porto de Santos. Aluno do grupo escolar Marcílio Dias, onde cursou o primário, Lula ajudava o magro orçamento familiar engraxando sapatos ou vendendo laranja e tapioca na estação de barcas de Santos.
Em 1956, a família mudou-se para a capital paulista. Morava na Vila Carioca, num quarto e cozinha nos fundos de um bar. Aos l2 anos teve seu primeiro emprego, como ajudante numa tinturaria. Dois anos depois, ingressou numa metalúrgica e obteve o diploma de torneiro-mecânico no Senai.
Lula pisou pela primeira vez no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema em 1967, quando trabalhava nas Indústrias Villares. Em 1969, foi eleito suplente de diretoria do sindicato e em 1972, membro da diretoria executiva. Em 1975, assumiu pela primeira vez a presidência do sindicato, eleito com mais de 90% dos votos da categoria. Reeleito em 1978, inovou as campanhas salariais, introduzindo a luta pela reposição salarial e promovendo amplas mobilizações de massa.
A GREVE DE 1979
Fevereiro de 1979. No Morumbi, Corínthians e Guarany decidiam o campeonato paulista. Na galera, torciam Lula, Devanir Ribeiro, Janjão e Alemão. Iniciava-se a campanha salarial dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. A pauta de reivindicações incluia 34,1% além do índice oficial, como reposição das perdas salariais. Vendo a multidão no estádio, Lula teve uma idéia: convocar uma assembléia sindical capaz de lotar um campo de futebol.
13 de março de 1979: 80 mil metalúrgicos em greve ocupavam o gramado e as arquibancadas do estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. Sem microfone, Lula tinha o seu discurso repetido pelos que o ouviam, como ondas sucessivas de um lago atingido por uma pedra. Dois dias depois, quando 170 mil trabalhadores já estavam parados em todo o ABC, a greve foi considerada ilegal. Na madrugada de 22 de março para 23, enquanto os metalúrgicos permaneciam em vigília no sindicato, de Brasília o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, falava com o governador paulista, Paulo Maluf. Pouco depois, tropas da Polícia Militar garantiam a intervenção no sindicato.
A repressão ao movimento foi implacável. Com a Vila Euclides fechada, os trabalhadores faziam suas assembléias na Igreja Matriz de São Bernardo do Campo. Mas ao discutir com os empresários a trégua de 45 dias no movimento, Lula exigiu e obteve a reabertura do estádio.
O 1º de maio daquele ano coincidiu com o período da trégua. 150 mil trabalhadores participaram do ato comandado por Lula na Vila Euclides, quando Vinicius de Moraes recitou O Operário em Construção e correu a notícia de que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do Esquadrão da Morte, morrera estranhamente afogado no litoral paulista.
Ao final da trégua, a 13 de maio, assinou-se um acordo razoável entre empresas e sindicato, a intervenção foi suspensa e a greve encerrada. Embora reduzidos os ganhos salariais, o saldo político do movimento liderado por Lula fora significativo. Ao mobilizar todo o seu potencial repressivo, o governo revelara aos trabalhadores o seu caráter ditatorial; viera à tona a subserviência do poder público às multinacionais e, do ministério do Trabalho, à Fiesp; a Lei de Greve ficou desmoralizada; a liderança de Lula e de seus companheiros de diretoria conquistara mais representatividade, pois mesmo com o sindicato sob intervenção eles foram reconhecidos pelo governo e os patrões como únicos interlocutores legítimos.
A GREVE DE 41 DIAS
Em 1980, Lula liderou a histórica greve de 41 dias. A campanha salarial dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema reivindicava sobretudo garantia de emprego, redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, controle das chefias pelos trabalhadores e direito de os dirigentes sindicais ingressarem nas empresas a qualquer hora. Como os patrões se mostraram irredutíveis às negociações, a greve teve início a lº de abril, quando 140 mil metalúrgicos cruzaram os braços.
A repressão ao movimento incluiu até helicópteros do Exército que, armados de metralhadora, sobrevoaram as assembléias da Vila Euclides. Lula conseguiu que os trabalhadores não se deixassem intimidar. Enquanto cantavam o hino nacional, todos erguiam bandeirinhas do Brasil distribuídas pelo sindicato.
A 17 de abril, o ministro do Trabalho, Murilo Macedo, decretou a segunda intervenção no sindicato presidido por Lula, cassando seus diretores da vida sindical, mas sem conseguir que se afastassem do comando do movimento. No dia 19, às 6 da manhã, Lula foi preso em sua casa pelo DOPS, numa operação coordenada pelo governo Paulo Maluf, e que envolveu a prisão de inúmeros dirigentes sindicais em todo o ABC, inclusive sindicalistas e juristas de S. Paulo.
No lº de maio, Lula teve a alegria de saber, na prisão, que 120 mil pessoas haviam se reunido numa manifestação em São Bernardo do Campo. A tristeza, poucos dias depois, foi obter permissão especial para, escoltado, comparecer à missa de corpo presente de sua mãe. Como forma de pressão para que os patrões retomassem as negociações, Lula e seus companheiros de cárcere fizeram seis dias de greve de fome.
Em 20 de maio de 1980, Lula teve sua prisão preventiva revogada. Libertado, sua primeira atitude ao chegar em casa foi soltar os passarinhos da gaiola… Julgado pela Justiça Militar em novembro de 1981, recebeu a pena de 3 anos e 6 meses de prisão. Posteriormente, o Superior Tribunal Militar anulou o processo.
A greve terminou a 11 de maio, com o saldo de um grande avanço político na organização e na consciência de classe dos metalúrgicos do ABC.
O PARTIDO DOS TRABALHADORES
A proposta de se criar o PT surgiu no mesmo dia em que nasceu Sandro, filho de Lula: 15 de julho de 1978. No hotel Bahia, em Salvador, onde participava de um congresso dos petroleiros, Lula declarou à imprensa que chegara a hora de a classe trabalhadora criar o seu próprio partido político.
Lula descobrira que a questão sindical é também uma questão política. No cenário político nacional, todos os partidos pretendiam ser a voz do povo, enquanto o próprio povo não tinha como expressar sua voz. Em janeiro de 1980, mais de 80 deputados reuniram-se no Pampas Palace Hotel, em São Bernardo do Campo, para debater a proposta do PT. Nenhum deles suportou assumir por mais de uma eleição um partido classista, com grande disciplina e democracia internas, e com um programa nitidamente socialista.
Lula percorreu o Brasil para convencer a classe trabalhadora de que era inútil esperar que um Congresso Nacional repleto de empresários fizesse leis favoráveis aos assalariados. A primeira reunião histórica do PT realizou-se em janeiro de 1980, paradoxalmente num antigo reduto da burguesia paulista, o colégio Sion. Intelectuais como Antonio Candido, Mário Pedrosa e Sérgio Buarque de Hollanda logo aderiram à nova proposta partidária.
Em 1982 o PT, que já congregava 400 mil militantes em todo o Brasil, lançou Lula candidato a governador de São Paulo. Apesar da falta de recursos da campanha e dos preconceitos de classe do eleitorado, Lula obteve 1 milhão e 200 mil votos. Em 1986, elegeu-se à Assembléia Nacional Constituinte com 652 mil votos, o maior índice obtido por um deputado federal naquela eleição. Dos 572 municípios de São Paulo, ele recebeu votos em 568, sobretudo nas regiões industriais. Na Constituinte, sua atuação em favor dos interesses dos trabalhadores foi considerada exemplar pela imprensa especializada.
Presidente do Partido, reeleito desde sua fundação em 1980, Lula deixou o cargo em 1987, reforçando o princípio do rodízio na direção partidária. Desde então, tornou-se presidente de honra do PT. E ajudou a fundar a CUT, a CMP (Central de Movimentos Populares) e o Instituto Cidadania, do quel é presidente.
Agora, se prepara para presidir o Brasil, com posse marcada para 1º de janeiro de 2003.
*Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto — autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.