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maio/2012

Mais de 3 mil são vítimas de empréstimos fraudulentos

Casas de crédito consignado em Coroatá, no Maranhão: Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade ajuizou 600 ações indenizatórios em nome de vítimas do golpe do superendividamento

MÁFIA DO SUPERENDIVIDAMENTO

Até  para quem não sabe ler, o apelo é tentador. Letreiros coloridos exibem  reproduções de notas de R$ 50 e R$ 100 e imagens de idosos sorridentes.  “As melhores conquistas também fazem parte da melhor idade”, diz um  deles. “Mais rápido e pronto para resolver seus problemas”, promete o  outro. No comércio de Coroatá, cidade do cerrado maranhense a 276  quilômetros de São Luís, casas de empréstimo consignado estão em cada  esquina. Elas chegaram dispostas a democratizar o acesso ao crédito  “fácil, sem consulta ao SPC ou avalista”, mas tudo o que conseguiram foi  levar para o sertão uma epidemia que se espalha pelo país: o golpe do  superendividamento, embalado pela exploração da boa-fé de aposentados e  pensionistas.

Damião Sátiro de Oliveira, de 71 anos, caiu na  tentação. Analfabeto e aposentado rural em Coroatá, recorreu a uma das  lojas, cujo nome não lembra, para pedir um empréstimo consignado. Queria  pagar uma dívida. Entregou os dados pessoais e calcou o dedo polegar no  contrato. Meses depois, descobriu que outros quatro empréstimos foram  feitos em seu nome, sem que tivesse autorizado. Hoje, recebe apenas R$  300 do benefício de R$ 622 – o restante é retido para pagamento das  dívidas – e foi obrigado a cortar remédios de uso contínuo para viver  com metade da renda habitual.

– Nunca ouvi falar dos bancos que  estão descontando o meu dinheiro. Para piorar, a minha mulher caiu no  mesmo golpe – lamentou o aposentado.

Mas Damião Oliveira não é um  caso isolado. Em um país que registrou, somente nos cinco primeiros  meses de 2012, R$ 11,4 bilhões em contratos de empréstimos consignados, o  INSS reconhece que o golpe do superendividamento não é um problema só  dos bolsões de pobreza do Nordeste, mas de todo o Brasil. O instituto já  recebeu denúncias de que, para atrair os incautos, há até pequenas  lojas que colocam a logomarca “INSS” na fachada. Oficialmente, a  Previdência Social contabilizou 3.200 vítimas do golpe no ano passado,  mas o número pode estar subestimado. Somente o Sindicato dos  Trabalhadores Rurais de Coroatá ajuizou 600 ações indenizatórias em nome  de vítimas do golpe e pretende ingressar com outras 400.

— Estão  transformando uma legião de miseráveis em uma legião de miseráveis  endividados – lamenta o ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal  de Justiça (STJ).

Empréstimos em mais de uma cidade

Presidente  da comissão de juristas que preparou o anteprojeto de atualização do  Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), Benjamin se refere aos  aposentados e pensionistas mais pobres, vítimas preferenciais dos  golpistas e do próprio sistema de crédito, que não informa os riscos do  empréstimo. Para estancar a sangria, a comissão está propondo o veto à  prática de atos de assédio ao consumidor de crédito, especialmente o  idoso, o doente ou em estado de vulnerabilidade agravado, e um limite de  endividamento pessoal fixado em 30% da remuneração mensal líquida,  chamado de “mínimo existencial”.

– O crédito consignado é uma  bomba-relógio, uma perversão da democracia. É como medicamento. Se a  pessoa não tem condições de entender a bula, não tem também condições de  identificar os perigos do contrato de crédito – disse Benjamin.

Por  lei, a concessão de empréstimos à revelia do favorecido é caso de  polícia. Por causa disso, o INSS mantém, desde março, um posto avançado  na Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso de Teresina, que atua em  todo o Piauí e suspende o desconto das parcelas dos empréstimos  consignados quando o aposentado prejudicado registra o caso em boletim  de ocorrência. Mas a investigação é difícil, desarticulada e raramente  chega à autoria do crime.

Como as operações de empréstimo  consignado são fechadas por agentes credenciados pelas instituições  financeiras (os correspondentes bancários ou “pastinhas”, como são  popularmente conhecidos), eles encabeçam a lista de suspeitos do golpe.  Isso não significa que sejam os únicos. De acordo com o INSS, um dos  casos mais comuns é a chamada fraude familiar, quando um filho ou  parente se vale da boa-fé do aposentado e falsifica documentos, ou até  mesmo mente para que o idoso assine um papel dando à pessoa a  autorização para fazer empréstimos em seu nome.

O golpe do  superendividamento não prospera apenas nas camadas mais pobres da  população. A aposentada carioca Sônia Regina Canha Rosa, de 53 anos,  tomou um susto quando recebeu apenas R$ 700 da aposentadoria mensal de  R$ 6,2 mil. Ao cobrar explicações do INSS, descobriu que incidiam sobre o  benefício as parcelas correspondentes a dois empréstimos consignados  que alegou nunca ter pedido:

– Quero meu dinheiro de volta.

Sônia  disse que, há meses, o seu nome tem sido usado em vários tipos de  golpes, entre os quais a compra de equipamentos eletrônicos e a  instalação de linhas telefônicas. Ela acredita que os dois empréstimos  consignados estão nesse contexto. Com o apoio da Defensoria Pública, a  aposentada ajuizou ações de ressarcimento, mas só conseguiu a devolução  do dinheiro de um dos bancos, ainda assim sem juros:

– O que mais  me impressiona é a quantidade de pistas deixadas pelos golpistas. Mas  ninguém, dos lojistas aos funcionários dos bancos, fez nada para  esclarecer.

O presidente do Sindicato Rural de Coroatá, Antônio  Viana, disse que o golpe não perdoa nem o Benefício de Prestação  Continuada (BPC), que assegura transferência de um salário mínimo a  pessoas com mais de 65 anos e que não pode ser usado para empréstimos  consignados. Viana disse que, para burlar o veto, o “pastinha” abre uma  nova conta bancária em nome do beneficiário, para onde o dinheiro é  transferido sistematicamente. Como é conta comum, está livre para  aceitar as consignações. Em Coroatá, pedidos de indenização já são 80%  das 3.700 ações em andamento na vara especializada.

Na tentativa  de reduzir o número de fraudes, o INSS determinou que não sejam mais  efetuados empréstimos de um mesmo segurado em estados diferentes. Antes,  uma mesma pessoa podia fazer empréstimos em cidades diferentes, o que  fez com que muitos golpistas aproveitassem para conseguir, com  documentos falsos, a liberação de empréstimos em cidades diferentes da  que a vítima residia. Ou seja, demorava muito para que o aposentado  tomasse conhecimento e pudesse saber de onde veio a fraude.

Para o  ministro Herman Benjamin, o que foi feito até agora não resolve. Ele  disse que, entre as medidas cobradas, é preciso analisar “certa  promiscuidade” entre o empregador público e as instituições credenciadas  para operar o crédito consignado:

– O crédito não é algo que se  deva oferecer, mas, sim, buscar. Não sou contra. É um instrumento de  distribuição social dos benefícios da sociedade de consumo. Porém, se  não houver providências das autoridades, o crédito terá efeitos  catastróficos na vida de milhões de brasileiros sem condições de pagar  dívidas sem fim.

Fonte: O Globo

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