O Supremo Tribunal Federal concluiu, nesta quinta-feira (16/2), pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. A aprovação, por 7 votos a 4, foi conquistada já com os dois primeiros votos proferidos na sessão desta quinta, pelos ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, que seguiram o relator da matéria, Luiz Fux, a favor da lei.
Os ministros também concluíram que a Lei Complementar 135 pode incidir sobre fatos ocorridos antes da sua edição e promulgação, além de terem considerado constitucional o dispositivo que torna inelegíveis por oito anos os políticos condenados por órgãos colegiados da Justiça, mesmo que ainda caiba recurso.
Em relação ao dispositivo que proíbe a candidatura de políticos que renunciaram a mandatos para evitar processos de cassação, a despeito da renúncia ser anterior à vigência da lei, a corte também julgou como válido.
A sessão desta quinta-feira foi aberta com o voto do ministro Ricardo Lewandowski, que começou evocando o amplo apoio popular à Lei da Ficha Limpa. Ele lembrou que a lei surgiu do amparo de mais de 1,5 milhão de assinaturas e disse que o Supremo estava diante de uma norma que contava, além do anseio popular, com o apoio expresso dos outros dois poderes constituídos. “Estamos diante de um diploma legal que conta com o apoio inequívoco e explícito dos representantes da soberania nacional”, disse.
Lewandowski questionou a interpretação de que a lei foi forjada às pressas, carecendo de amparo técnico e qualidade legislativa. Segundo o ministro, a norma foi fruto de “intensos e verticais debates nas duas casas do Congresso”. Respondendo às críticas de ministros opositores, Lewandowski disse que a própria lei traz mecanismos que permitem que excessos sejam prontamente reparados.
O ministro Ayres Britto explicou que seu consentimento à lei nasceu justamente da comparação da norma com sua matriz constitucional. Segundo ele, a Lei da Ficha Limpa vem atender o que dispõe o parágrafo 9º do artigo 14º da Constituição, que antecipa o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade, além dos previstos pela Carta.
Para Ayres Britto, a própria Constituição reage de forma severa, “drástica na proteção da probidade administrativa”, uma vez que “nossa tradição política não é boa […], é péssima em matéria de respeito ao erário”. O ministro não deixou de mencionar, mais uma vez, que a origem etimológica da palavra ‘candidato’ guarda relação com ‘cândido’ e que ‘candidatura’ tem semelhança semântica com ‘pureza’. A ministra Rosa Weber já havia defendido, no dia anterior, tese semelhante ao postular que as exigências colocadas aos homens públicos são maiores dos que as apresentadas ao “homem comum”.
O voto de Ayres Britto garantiu previamente a aprovação necessária para assegurar a constitucionalidade da Lei Complementar 135. Coube em seguida, como previsto, a Gilmar Mendes exprimir voto de contrariedade aos dispositivos da lei.
Mendes começou afirmando que o princípio de presunção da inôcência não está restrito ao campo penal, sendo, assim, irradiado para todos os aspectos da vida civil e projetando seus efeitos para esferas processuais não penais. “Não cabe a esta corte a relativização de princípios constitucionais dando vazão a anseios populares”, opinou o ministro. (clique aqui para ler o voto de Gilmar Mendes)
Mendes citou a obra A crucificação e a democracia, em que o autor Gustavo Zagrebelski defende a tese de que a crucificação de Cristo decorreu de um processo naturalmente democrático para os padrões da época e daquele local, quando então o “anseio das massas” teve um papel decisivo no desfecho da história contada pelos Evangelhos.
Citando o jurista Hans Kelsen, o ministro disse ainda que remeter a aprovação de uma lei ao princípio representando pelo aforismo Vox populi, Vox Dei (voz do povo, voz de Deus) é conceder à população a condição de infalibilidade e onipotência. Gilmar Mendes defendeu que leis com expressivo apoio da opinião pública devem inadvertidamente passar pelo “controle constitucional do juízo”.
“A população acredita que a solução para improbidade é a Lei da Ficha Limpa. Daqui a pouco não bastarão o colegiado, o 2º grau”, protestou Mendes. “Daqui a pouco isso seria insuficiente. Bastará a denúncia em 1º grau e talvez um inquérito policial”, disse.
Mais uma vez Celso de Mello se uniu a Gilmar Mendes nas críticas aos dispositivos apreciados pela corte. “Pode o Congresso, sob ponderação de valores, submeter garantias individuais? Um direito fundamental é marginalizado”, disse o decano.
Retroatividade da lei
Logo depois do intervalo, foi a vez do ministro Marco Aurélio proferir seu voto de concordância em relação à nova lei. Marco Aurélio foi o único integrante da corte que não havia se manifestado até o momento de declarar o voto. O ministro provocou um impasse ao dizer que o cálculo de desconto da pena de ineligibilidade, como sugerida pelo relator, decorria execessivamente da “fé na morosidade da Justiça”. Ele defendeu o entendimento dos legisladores ao estabelecer o prazo de oito anos, e rejeitou assim a proposta de subtração pelo tempo decorrido entre a condenação e o julgamento de recursos.
Frente a seus argumentos, a ministra Cármem Lúcia mudou seu voto no ponto em que consentia com a proposta do relator. Toffoli também saudou o raciocínio do colega, reconhecendo que o prazo estipulado originalmente pela lei “tem um fundamento constitucional, pois se baseia no cargo de maior longevidade da República, o de senador”.
Ao defender o caráter da Lei Complementar 135, Marco Aurélio disse que é diferente “selar o destino de alguém em efeito criminal e o fazer no âmbito de um cargo eletivo”. Apesar do voto favorável, o ministro rejeitou o princípio de retroatividade, que estende a pena a casos anteriores à edição da lei.
Penúltimo a votar, Celso de Mello, reconhecendo o voto vencido, criticou o que considera uma afronta ao princípio de presunção de inocência. O decano também criticou severamente o dispositivo de retroatividade. “O Congresso não tem o poder de escolher fatos consumados no passado para, a partir dessa indentificação, elegê-los como critérios para restrição de direitos fundamentais”, disse.
Cezar Peluso, que votou por último, contra a lei, bateu na mesma tecla. “Retroatividade maligna”, disse o presidente do Supremo, classificando o dispositivo como “confisco de cidadania”. “A lei deixa de ter caráter prospectivo e geral passa a ter caráter particular”, disse Peluzo. “Se transforma em lei num ato estatal de caráter pessoal de privação de bem jurídico à pessoa determinada.”
Adiamentos
O relator da matéria, ministro Luiz Fux, ainda em 2011, considerou a plena aplicabilidade dos dispositivos da lei e que ela deve incidir sobre fatos anteriores à sua vigência. Sugeriu, contudo, que o prazo de suspensão dos direitos políticos ativos por oito anos sofresse desconto pelo tempo que o candidato perdeu com recursos na Justiça. A única ministra, que havia votado com o relator neste ponto, voltou atrás e votou a favor da totalidade da lei.
Os ministros Joaquim Barbosa Rosa Weber, Cármem Lúcia, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio votaram pela constitucionalidade e validade da lei em sua integralidade, pedindo vênia ao relator no que tange ao desconto da suspensão de oito anos pelos anos ocupados, pelo candidato, com recursos na Justiça.
O voto do ministro Dias Toffoli confirmou a validade dos efeitos da lei para as próximas eleições municipais, mas rejeitou que o impedimento de candidatura sobrevenha antes do esgotamento dos recursos devidos, o que, em termos gerais, acata a ação de inconstitucionalidade. Gilmar Mendes concedeu procedência total ao pedido de inconstitucionalidade.
O julgamento foi provocado por duas ações declaratórias de constitucionalidade e outra que questionava a alínea da lei. Em novembro, por conta de um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, a corte suspendeu o julgamento. Em dezembro, foi a vez de de Dias Toffoli solicitar maior prazo para estudar a matéria.
A fim de não comprometer o julgamento com novos impasses, a corte constitucional brasileira aguardou a posse da ministra Rosa Weber, mais nova integrante do tribunal para avaliar a extensão e os termos de aplicação da Lei Complementar 135.
Recepção da norma
Mal foi assegurada a maioria na aprovação da nova lei, ainda na sessão desta quinta-feita, e o fato foi saudado por entidades favoráveis à sua vigência nas eleições de 2012.
O presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, comemorou o acolhimento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 30, ajuizada pela entidade. “É uma vitória da cidadania, da ética e do povo brasileiro, que foi às ruas e disse para todo o Brasil que quer mudança na política”, disse. “Agora os partidos terão de avaliar se o candidato tem o passado limpo. Isso é muito importante para mudarmos o caminho da política atual no sentido da ética e da moralidade”.
O presidente da seccional da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, também saudou o resultado do julgamento como um passo na depuração dos costumes políticos do país. “A aplicação da Lei da Ficha Limpa nas eleições municipais de outubro próximo vai ajudar na depuração dos costumes políticos no Brasil”, declarou.
“Queremos, de fato, moralizar a política brasileira mas não a custa de perseguição a adversários. Por isso, a Lei da Ficha Limpa põe sobre os ombros do Poder Judiciário uma grande responsabilidade nesse sentido”, afirmou.
O Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), em nota oficial, também saudou a aprovação da constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Nas palavras do presidente da entidade, Fernando Fragoso, a decisão atende aos anseios populares e reflete a busca da ética na política brasileira.
Considerando apenas as sessões de quarta e quinta-feira (15 e 16/2), o julgamento conjunto que avaliou a constitucionalidade de alguns dos dispositivos da Lei Complementar 135 levou mais de 11 horas de duração.
No que diferem os votos dos que são favoráveis à Lei da Ficha Limpa?
O ministro Luiz Fux (relator), em voto favorável à lei, entendeu, contudo, que o período de ineligibilidade que pesa contra o candidato (8 anos) deveria sofrer descontos contabilizados pelos anos que o político gastou na Justiça com recursos.
Os ministros Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Cármem Lúcia, Ricardo Lewandowski e Carlos Ayres Britto decidiram pelo apoio integral aos dispositivos da Lei Complementar 135, pedindo vênia a sugestão do relator. Cármem Lúcia inicialmente votou em consentimento com o relator, amparando a sugestão de supressão de tempo do cálculo do tempo de inelegibilidade. Porém, voltou atrás, reconhecendo a constitucionalidade dos dispositivos da lei em sua integralidade.
Marco Aurélio, ao contrário dos demais colegas favoráveis a lei, rejeitou o princípio de retroatividade, que estende o impedimento de candidatura aos políticos que respondem na Justiça por atos ocorridos antes da sanção da lei.
No que diferem os votos dos que votaram contra a Lei da Ficha Limpa?
O ministro Dias Toffoli rejeitou somente o dispositivo que impede a candidatura do político antes do esgotamento do processo judicial, mas consentiu ao entender que a pena possa se estender àqueles que renunciaram o mandato antes da promulgação da lei, embora tenha afirmado não estar totalmente certo sobre sua decisão neste pormenor. Gilmar Mendes rejeitou ambos os dispositivos.
Celso de Mello a exemplo de Gilmar Mendes rejeitou o dispositivo de retroatividade, assim como Cezar Peluso.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.