Ex-desembargador do Tribunal do Trabalho rebate críticas à unicidade sindical vigente no país e defende a realização de uma reforma sindical que não prejudique a luta dos sindicatos pela ampliação dos direitos dos trabalhadores
José Carlos Arouca é advogado trabalhista e presta assessoria para diversos sindicatos no país. Foi desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região entre 1999 e 2005. É autor de diversas publicações sobre direito sindical, incluindo Repensando o Sindicato, O Sindicato e o Mundo Globalizado e Curso Básico de Direito Sindical.
Nesta entrevista, José Carlos Arouca fala dos benefícios da unicidade sindical e das consequências negativas que terá para o movimento dos trabalhadores uma possível aprovação no Congresso da Proposta de Emenda à Constituição 369, que institui uma reforma sindical.
Em que consiste a unicidade sindical e qual o debate em torno dela?
A unicidade sindical consiste em haver apenas um sindicato por categoria profissional na mesma base territorial, e está prevista no artigo 8º, inciso II da Constituição Federal de 1988. Em recente entrevista [27 de fevereiro de 2012, em O Estado de S. Paulo], o ministro João Oreste Dalazen, presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), atribui toda a crise sindical à unicidade, com isso concluindo pela total imobilidade do movimento sindical brasileiro. Já de algum tempo existe uma campanha intensa contra a unicidade sindical. Em primeiro lugar se diz que a unicidade sindical é um instituto fascista, usado por Mussolini, previsto na Carta del Lavoro, que por sua vez foi copiada pela ditadura de Getúlio Vargas no Brasil. Dois dos maiores autores brasileiros no campo do direito do trabalho, Evaristo de Moraes Filho e Arion Romita, comparando a CLT à Carta del Lavoro, mostram examente isto: a unicidade nunca foi um instituto fascista. Foi sim acolhida pelo fascismo, que fez uso político dela. A sua origem é, na verdade, eminentemente socialista. Ao final da 2ª Guerra Mundial, na Itália, se reuniram as organizações clandestinas comunistas, socialistas e católicas, e as três fizeram o Pacto de Roma (1946), prevendo uma única organização sindical para um dado ramo de atividade. Aqui em São Paulo, em 1944, houve um congresso, chamado de 1º Congresso dos Trabalhadores de São Paulo, onde se aprovou que, quando a democracia voltasse, seria aplicada a unicidade sindical. Outro dado histórico interessante é o da Revolução dos Cravos de 1974, em Portugal: derrubada a ditadura de Salazar, implantou-se a unicidade sindical. A estigmatização da unicidade sindical, portanto, precisa ser repensada a partir de um levantamento da história real. Quem está fazendo esta crítica não está atento à história sindical do Brasil e do mundo.
Quem defende o fim da unicidade afirma que ela fere frontalmente a liberdade sindical. Como o senhor vê esta questão da liberdade sindical?
Prevista na Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a liberdade sindical consiste em que todos nós temos direito de fundar a organização sindical que quisermos e nos filiarmos aos sindicatos conforme a nossa vontade. No Brasil, a unicidade na era Vargas não foi uma unicidade da classe trabalhadora, mas uma unicidade de categoria. A legislação sindical da era Vargas não permitia a fundação de central, que seria uma organização geral dos trabalhadores. Havia apenas a pirâmide: sindicato, federação e confederação. A partir de 1964, na ditadura militar, não era permitida a reunião intersindical, sob pena de prisão e intervenção militar. A defesa da unicidade ficou muito fragilizada e houve uma multiplicação de centrais. Ou seja, a liberdade sindical terá o mesmo tamanho da liberdade política.
Há também o argumento de que a responsabilidade por um suposto imobilismo do movimento sindical atual, pela crise sindical e pela multiplicação de entidades — que chega a quase dez mil organizações — caberia à unicidade sindical. Isso é verdade?
Este raciocínio está totalmente equivocado e não está de acordo com a história. Quanto à questão da multiplicidade de sindicatos, eu vejo uma incongruência: se há um confronto entre unicidade e pluralidade, a pluralidade supõe uma multiplicidade de organizações, e a unicidade uma única organização. Seria um absurdo atribuir à unicidade a proliferação de sindicatos. O que acontece é o seguinte: em 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que continuava com o Ministério do Trabalho a competência para o registro de entidades sindicais. A partir do momento em que o PT asumiu o governo federal, quem ocupou este ministério — Ricardo Berzoini e Carlos Lupi — foram os responsáveis pelo registro deste número astronômico de sindicatos. Salvo os servidores, que não tinham sindicato e criaram cerca de 1.300, não se pode encontrar um único sindicato novo de uma categoria que já não estivesse organizada. O que se vê são registros de sindicatos resultantes de dissossiação e desmembramento, e sem nenhum apego à democracia. Em nome da liberdade sindical, registraram-se sindicatos com 15 pessoas para representar uma categoria que já estava representada com uma base de 5 mil trabalhadores há 50 anos. Certa vez, em um 1º de Maio, houve quatro assembleias simultâneas para fundar quatro sindicatos, em Atibaia, Osasco, Itapecerica e Mogi das Cruzes, dividindo a representação do sindicato dos hoteleiros em São Paulo. Então, mesmo no regime da unicidade, o Ministério do Trabalho continua registrando tudo que aparece lá. Outro exemplo: o sindicato dos hoteleiros, que tem mais de 50 anos, com suas convenções coletivas, conseguiu através do tempo um piso salarial razoável, alimentação gratuita no local de trabalho, plano de seguro de vida etc. Então, as multinacionais “do hamburguer” fundaram um sindicato do fast food. O Ministério do Trabalho aceitou tranquilamente. E o que fez este sindicato? Uma convenção coletiva com o sindicato patronal do ramo, reduzindo em tudo as conquistas do sindicato preexistente.
O que muda se a PEC 369 for aprovada?
Muda tudo. Se for aprovada a Convenção 87 da OIT ou a PEC 369/2005, vai ser possível a organização conforme a atividade econômica da empresa, conforme a profissão (categorias diferenciadas) e conforme local de trabalho. Imagine o setor automotivo: em cada empresa há mais de mil trabalhadores. Em cada uma delas, temos um ou dois telefonistas (não o telefonista do setor de telecomunicações, mas o da montadora). Se a organização passar a ser por profissão — a chamada “diferenciada”, com cinco ou seis pessoas em assembleia — é muito mais difícil haver convenção coletiva. Seguindo para o Tribunal do Trabalho, dificilmente os processos, que demoram três ou quatro anos, resultam em vitória dos trabalhadores. Já a organização no âmbito da empresa (local de trabalho) é altamente elitista: quando foram realizadas as grandes greves de 1978, havia greve nas grandes empresas e nas menores os trabalhadores ficavam de fora. A convenção coletiva seria feita, por exemplo, só para os mecânicos da Volkswagen. Estes trabalhadores, que tem salários e condições de trabalho mais vantajosos, uma vez feito o acordo, não irão apoiar a greve nas oficinas mecânicas da vizinhança. Portanto é um sistema elitista que nós combatemos.
O senhor afirma que com a unicidade, temos um só sindicato por categoria. A proposta da PEC é acabar com a unicidade e instituir a pluralidade nestas três formas: por categoria, por profissão e por local de trabalho. Seria possível ter na mesma empresa mais de um sindicato?
Sim, muitos e muitos sindicatos na mesma empresa. A consequência lógica, em primeiro lugar, vai ser as centrais terem cada qual os seus sindicatos na base. As centrais já são plurais, e será possível, a partir do fim da unicidade, que exista um sindicato dos metalúrgicos da CUT, um da CTB e um da Força Sindical. Além disso, não é nada improvável que os patrões decidam fundar a sua central de direita, ou “pelega”, com seus respectivos sindicatos. Da mesma forma, seria possível que o governo crie os seus sindicatos “oficialistas”. Assim, haveria cinco sindicatos para cada atividade econômica, profissão ou empresa. Com o reconhecimento de profissões, se reforça o cartorialismo brasileiro, regulamentando-se novas profissões diferenciadas, permitindo assim novos sindicatos. Se a PEC for aprovada, ocorreria o que chamo de vácuo legislativo: é necessário que se elabore lei para regulamentar a nova situação da pluralidade e, enquanto isso não acontecer, vale tudo, inclusive a criação de sindicatos mistos. No regime de unicidade atual, é o sindicato que mantem a negociação com o patronato para chegar à convenção coletiva. Se este regime for alterado para a pluralidade, todos os sindicatos envolvidos podem negociar. Ninguém está entendendo o que seria isso no Brasil. Os patrões criariam um sindicato só para atrapalhar a negociação e pode negociar com o mais frágil dentre os vários sindicatos.
Qual a importância da contribuição sindical compulsória para a classe trabalhadora?
O imposto sindical equivale a um dia de salário por ano. A contribuição negocial hoje existe por força de lei. A lei que reconheceu as centrais sindicais, no artigo 7º, institui por força de lei a contribuição negocial, mas ela só vai vigorar quando for regulamentada e extinta a contribuição sindical. Se não houvesse lei, ninguém pagava imposto de renda, pelo menos 50% não contribuía pro INSS. Para a nossa formação cultural de hoje é indispensável que ela seja compulsória. A própria OIT permite essa contribuição em outros países, com o nome de contribuição de solidariedade. Há países em que os sindicatos negociam a convenção e ela é só para sócios: quem aderir paga a contribuição. Nesses países, a convenção coletiva não se aplica a quem não for associado. Será que isso é bom? Nesse sistema brasileiro, onde não tem estabilidade no emprego, onde não tem garantia nenhuma, onde os trabalhadores que se associam ao sindicato são mandados embora imediatamente? Negociamos a duras penas a participação nos lucros, um piso salarial, mas que vai ser aplicado só para os associados? Por outro lado, a OIT tem a Convenção 87. Ela foi assinada em 1948, em nome da liberdade sindical amplíssima. Ao longo do tempo se percebeu o seguinte: é injusto o associado que vai à assembleia, se expõe, é mandado embora, não recebe nada do reajuste e o não filiado fica com os dois — emprego e aumento. Passou-se a admitir a contribuição de solidariedade, que existe na Alemanha, na Inglaterra, na Suíça, na Suécia.
Independente de ser ou não associado, no atual modelo um acordo judicial serve para todos?
Sim, inclusive os negativos. Eu posso reduzir salário, eu posso flexibilizar jornada dependendo do acordo coletivo. E isso é legal porque tanto a flexibilização de salário como de jornada estão na Constituição Federal, no artigo 7. No governo FHC, veio o contrato por prazo determinado, o contrato a tempo parcial, a suspensão do contrato de trabalho, o banco de horas, tudo mediante negociação coletiva. Então, se o sindicato negociar com o empregado e reduzir o salário não vai ter direito de oposição. O sindicato negocia para sócio e não sócio, ele consegue um aumento, um piso salarial, um auxilio saúde, tudo isso vale para todos.
Hoje a contribuição compulsória tem importância para o movimento sindical?
Tem, mas está comprometida diante da atuação do Ministério Público e do Tribunal Superior do Trabalho. O MP está entrando com inquérito civil para o sindicato assinar um TAC, termo de ajustamento de conduta, para só cobrar dos associados. E se não cobrar apenas dos associados, garantir o direito de oposição à constribuição. Então, o trabalhador vai ter o direito ao almoço gratuito, ao plano de seguro, mas tem o direito de se opor à contribuição. Ao que é vantagem o trabalhador não se opõe. Isso é o comprometimento. E se você não assina o TAC, no dia seguinte eles entram com ação civil pública na justiça do trabalho e o juiz, invariavelmente, defere uma medida liminar mandando suspender o recebimento da contribuição. Ultimamente, eles estão pedindo até a devolução do que os sindicatos já receberam nos últimos 5 anos. O que significa, praticamente, o fechamento do sindicato.
Fonte: CTB