Encerrado o primeiro trimestre e com ele o vencimento das parcelas do IPVA, inicia-se o prazo para obtenção do novo Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRLV), cuja emissão pressupõe o pagamento do referido imposto, além de multas vinculados ao automóvel, nos termos do artigo 131, parágrafo 2º, do Código de Trânsito Brasileiro.
Com isso, intensifica-se a fiscalização estadual por meio das tão conhecidas “blitz”, em que as autoridades de trânsito, verificando que o condutor não está de porte do CRLV do exercício ou, na sua falta, constatando que não foram quitados o imposto e as demais multas administrativas, procedem à apreensão e remoção do veículo.
A prática de apreensão veicular tem sido utilizada, inclusive, como instrumento na “guerra fiscal” entre Estados, como se pode verificar da denominada “Operação de Olho na Placa”, realizada no Estado de São Paulo, onde foram apreendidos centenas de veículos, principalmente os de propriedade de empresas locadoras de automóveis que registraram seus veículos e recolheram o IPVA correlato em ente diverso da Federação.
No entanto, a apreensão de automóveis e o óbice à emissão do CRLV exclusivamente em virtude do não recolhimento do IPVA constituem verdadeiras sanções políticas impostas pelo Fisco, posto que visam compelir o pagamento de tributo, em claro desrespeito às garantias fundamentais do contribuinte.
Aqui, não se nega que os atos da administração tributária sejam atribuídos de imperatividade, qualidade pela qual aquele se impõe a terceiros, independentemente da concordância destes.
Constatando-se a subsunção entre o evento e a hipótese de incidência, o Fisco, independentemente da aceitação do contribuinte, deve constituir a obrigação tributária, conferindo exigibilidade ao crédito tributário, habilitando-a a exigi-lo de terceiros.
A exigibilidade, porém, não se confunde com a executoriedade que, por sua vez, traduz-se na capacidade do aparato administrativo obter o cumprimento das obrigações independentemente da intervenção do Judiciário. Enquanto, na executoriedade, a administração está habilitada a satisfazer-se diretamente das obrigações impostas ao administrado (coação material), a exigibilidade permite apenas a utilização de meios indiretos para seu cumprimento (coação indireta).
As decisões da administração tributária, portanto, não gozam de executoriedade, mas apenas de exigibilidade, podendo o Fisco valer-se tão-somente de meios que tenham por objetivo impelir, indiretamente, o cumprimento da obrigação (como exemplo o óbice à emissão de certidões de regularidade fiscal e a inscrição em cadastro de devedores).
A apreensão de veículos e o óbice à emissão do CRLV em virtude do não recolhimento do IPVA são sanções políticas
Contudo, mesmo os instrumentos de coação indireta encontram limites na ordem constitucional, não podendo o Fisco utilizar-se de medidas que restrinjam ou impeçam, direta ou indiretamente, o direito de propriedade de um determinado bem, para obter pagamento de seus créditos. Em exemplo citado na doutrina, seria o mesmo que retirar o contribuinte de sua residência em caso de inadimplemento do IPTU.
É que, dentre as garantias constitucionais do contribuinte em face do abuso do Estado, tão pródigo na cobrança de seus tributos, estão o direito de propriedade, o do devido processo legal, consubstanciado no direito à ampla defesa e ao contraditório, e a vedação à limitação do tráfego de bens e pessoas por meio de tributos.
Assim, cabe à administração fazendária formalizar a exigência da obrigação por meio de lançamento fiscal e, em seguida, notificar o contribuinte para que, querendo, apresente impugnação administrativa. Não sendo apresentada defesa ou sobrevindo decisão irrecorrível na esfera administrativa, constitui-se definitivamente o crédito tributário, o qual deverá ser inscrito em dívida ativa para instruir a Execução Fiscal a ser proposta. Paralelamente, poderá o Fisco inscrever o devedor em cadastro de inadimplentes e negar-lhe o fornecimento de certidão e regularidade fiscal.
Ora, se a Fazenda Pública dispõe de procedimentos específicos para a cobrançado crédito tributário – que, aliás, goza de relevantes garantias e privilégios -, não lhe é facultado o emprego de instrumentos outros que constrinjam o contribuinte ao recolhimento do tributo.
Além disso, a apreensão de veículos e o óbice à emissão de CRLV como forma de cobrança do IPVA passam ao largo do teste de razoabilidade e proporcionalidade, que investiga a necessidade, adequação e pertinência dos meios utilizados para invadir o patrimônio do contribuinte.
Vale ressaltar, ademais, que a utilização das malsinadas “sanções políticas” como meio de coação para o pagamento de tributos já foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal, tal como entendimento consolidado nas Súmulas de números 70, 323 e 457.
Atento a isso, o Tribuna de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) já decidiu que o ordenamento jurídico vigente veda a imposição de sanção política visando ao recolhimento de tributos uma vez que dispõe o ente público de meios legítimos e eficazes para cobrar seus créditos, sem que, para isso, venha a bloquearou mesmo restringir, direta ou indiretamente, o direito de propriedade do veículo (Ap. Civ. nº. 1.0245.02.003219-0/001).
No mesmo sentido, o TJ de São Paulo vem entendendo que as “medidas coercitivas aplicadas na “Operação de Olho na Placa” afrontam os princípios do contraditório e da ampla defesa. A apreensão de bem de particular reclama prévio procedimento com a observação das garantias constitucionais do devido processo legal (…)”.(Ap. Civ. nº 994.09.249738-2).
Cabe, portanto, aos contribuintes que se sentirem prejudicados, buscar no Judiciário o restabelecimento dos seus direitos e impedir tais práticas abusivas.
Fonte: Valor Econômico
Autor: Luiz Henrique Nery Massara