Por: Flávia de Almeida Viveiros de Castro
A ideia de um código de defesa do usuário dos serviços públicos não é nova. Desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), alguns estudiosos do tema entenderam que haveria necessidade de ser editada lei específica que tratasse de um consumidor típico: o usuário dos serviços públicos.
Da mesma forma, no texto da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, há previsão, em seu artigo 27, de lei de defesa do usuário do serviço público. O Supremo Tribunal Federal (STF), sempre atento às questões que envolvem exercício de direitos fundamentais, acaba de fixar prazo de 120 dias para que o Congresso edite a lei.
O Código de Defesa do Consumidor com seu solitário artigo 22 não se mostrou, em seus 23 anos de existência, plenamente adequado para tratar da qualidade dos serviços públicos que, conforme registra, deveriam ser adequados, eficientes, seguros e contínuos.
Na Emenda Constitucional nº 19/98, há previsão, em seu artigo 27, de lei de defesa do usuário do serviço público
Ocorre que o CDC foi pensado, principalmente, para a proteção do consumidor enquanto parte vulnerável em uma relação jurídica com o fornecedor, um agente privado do mercado de consumo. Quando se trata de serviço público, o regime jurídico já não é o mesmo, os interesses são distintos, a natureza da atividade é peculiar.
Há uma opção política na definição e criação dos serviços públicos, percebidos como sendo tarefa do Estado, voltada para suprir carências da iniciativa privada, em áreas de forte demanda popular e nas quais há necessidade de serem satisfeitas necessidades coletivas.
Os serviços públicos, por sua vez, não têm sempre as mesmas características, ora adquirindo caráter geral, sem identificação de destinatários específicos, sendo remunerados por tributo, como nas hipóteses de saúde, educação e segurança pública, ora sendo individuais, específicos e mensuráveis, custeados por tarifa, como água, telefone ou energia.
Entretanto, mesmo sendo reconhecidas tais diferenças entre as espécies de serviço público, essa constatação não invalida a necessidade premente de edição de uma nova lei que efetivamente proteja o usuário desses serviços, tanto no que diz respeito aos que são fornecidos de forma individualizada, quanto com relação aos que são ofertados de maneira generalizada, diretamente pelo Estado, ou indiretamente por meio de concessionárias e permissionárias.
Há projeto de lei esquecido nas gavetas do Legislativo nacional (Projeto de Lei nº 674, de 1999), que se propõe a regular essa importante relação entre o utente e o prestador do serviço público, deste sendo exigido que realize sua função em prazo razoável, de forma regular e contínua, prestando ao usuário todas as informações necessárias para que possa melhor usufruir do serviço do qual necessita, com atendimento respeitoso, em horários fixos, com transparência quanto às tarifas e outras formas de remuneração do que está sendo oferecido, já que não existe serviço público gratuito, mesmo quando este é aparentemente não remunerado, está sendo custeado pelos tributos, que são pagos com o suor do trabalho da população.
A lei poderá impor medidas simples, mas eficazes, como a obrigatoriedade de indicação de nome, número de cadastro dos prestadores de serviço, do telefone e e-mail de contato dos profissionais responsáveis, a fixação de horários de caráter obrigatório na prestação do serviço, a possibilidade de agendamento do atendimento ao usuário, seja em posto de saúde, seja pela administração da escola, seja pela repartição pública. O mesmo se diga com referências às empresas concessionárias e permissionárias.
Em conclusão, as manifestações sociais das últimas semanas demonstram, de forma inquestionável, que parcela importante da população não está satisfeita com os serviços ofertados pelo Estado, direta ou indiretamente. O eco destes movimentos pode reverberar nesse novo diploma legal, onde se consolidem direitos que resgatem a dignidade da pessoa do usuário do serviço público. Urbanidade no trato com o cidadão, eficiência inovativa, produtiva e alocativa na disponibilização do serviço, tratamento igualitário para todos os utentes do serviço, permanência nas condições de oferta não são metas inalcançáveis para um país que se diz gigante por sua própria natureza.
Flávia de Almeida Viveiros de Castro é doutora em direito civil-constitucional pela UERJ e juíza titular da 6ª Vara Cível Regional da Barra da Tijuca do TJ-RJ
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Fonte: Valor Econômico