“Lei mordaça!”, grita histérico o empresariado de comunicação equatoriano ao ver ser aprovada pela Assembleia Nacional, em junho, a Lei Orgânica de Comunicação no país. E ressoa ao longo das cordilheiras, florestas e pampas latino-americanos o alerta. Não é pra menos. Os sistemas nacionais de comunicação erguidos na América Latina como instrumentos de mando e desmando de Marinhos, Chatôs, Mestres, Azcarragas, Cisneros e alguns poucos outros vêm sofrendo duros golpes nos últimos anos. E o quadro não é nada agradável para quem está acostumado a ser “dono da bola”. Logo, o empresariado, desde sempre mimado por essas paragens, faz soar o alarme nos seus autofalantes.
A Argentina, em uma ebulição da sociedade civil incomum se tratando do tema , já aprovou sua Lei de Meios e enfrentou a fúria do “El Clarín”. A nova norma conseguiu um amplo reconhecimento internacional por sua capacidade de ampliar o acesso à mídia e diversificar o seu caráter. A Venezuela, na outra ponta, peitou a “RCTV” e decidiu que havia motivos suficientes para não renovar sua concessão. Não atraiu a mesma simpatia dos argentinos, mas provou que a irrevogabilidade das concessões dadas às grandes empresas privadas não passava de um mito. O Equador, em 2008, já havia aprovado em sua constituição que os bancos não poderiam ser acionistas de empresas de comunicação: um calafrio assomou a espinha do onipotente capital financeiro.
Como disse uma vez o presidente Rafael Correa, “se os cães ladram, é sinal de que estamos avançando”. E esses latem alto, pois são donos de quase todos os áudios potentes do continente. No final de 2012, a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), reunida em São Paulo, declarou que os presidentes do Equador, Argentina e Venezuela encabeçariam uma ofensiva para silenciar os meios “independentes”. Dessa vez, afirmou que a Lei Orgânica de Comunicação do Equador oficializa uma série de “delitos de imprensa”.
Todavia, o que realmente apavora os empresários não diz respeito à liberdade de expressão – tanto que os donos da mídia na América Latina sempre foram apoiadores ou fizeram vista grossa para as ditaduras que arrasaram as possibilidades democráticas no continente ao longo do século XX. O problema, para eles, é que o governo equatoriano limitou o alcance da propriedade privada. Segundo o relatório da Comissão de Auditoria de Concessões de Frequências de Rádio e Televisão, instituída em 2008 por mandato da Constituição Federal, cerca de 90% do espectro equatoriano é ocupado pelo setor privado-comercial. Hipertrofia comum no continente, que seguiu (de forma distorcida) o padrão estadunidense de organização do sistema nacional de comunicação. Aliás, foi capital norte-americano que financiou quase todos os magnatas da mídia abaixo do Rio Grande.
Frente a isso, a nova lei estabelece a redistribuição das frequências radiofônicas, com 33% para meios privados, 33% para meios públicos e 34% para meios comunitários, e determina a eliminação de monopólios (não mais do que uma concessão de frequência para emissoras de rádio AM e FM e uma para emissoras de TV). A lei impede também concessões de radiodifusão em uma mesma província para familiares diretos até o segundo grau de parentesco.
Ideias como essas tiram do sério a burguesia radiodifusora. Como de praxe, ao ver ameaçado o modelo comercial de sistemas de comunicação imposto na América Latina, o empresariado grita “olha a censura!”, e tenta disfarçar o sequestro da liberdade de expressão pelo poder econômico privado, que restringe o direito à comunicação da esmagadora maioria da população. Nesse sentido, a expressão “maioria silenciosa” se torna mais verdadeira do que nunca. E sobre ela repousam os guardiões da “liberdade de expressão comercial”.
Outro ponto criticado pelo empresariado equatoriano é o artigo 26 da nova lei, que proíbe o “linchamento midiático”. De acordo com o texto, “fica proibida a difusão de informação que, de maneira direta ou através de terceiros, seja produzida de forma concertada e publicada reiterativamente através de um ou mais meios de comunicação com o propósito de desprestigiar uma pessoa física ou jurídica ou reduzir sua credibilidade pública”.
Inserida no capítulo sobre “direito à comunicação”, a determinação é polêmica. Embora seja compreensível em sua intenção, visando neutralizar uma artimanha típica das tradicionais elites latino-americanas, a medida pode ser também o calcanhar de aquiles da norma, ao fragilizar qualquer oposição política (seja pela direita ou pela esquerda) impondo a fragmentação.
Quem disse que a democracia seria fácil? Pode não ser a lei dos sonhos, mas ela é fruto de uma discussão pública, aberta e contínua há pelo menos quatro anos no Equador, e que propõe a ampliação da participação, com novos critérios de divisão do espectro eletromagnético e garantia de direitos, baseados na diversidade sociocultural. Debate semelhante no Brasil o governo federal, coadunado com o empresariado, se nega a fazer.
A imprensa brasileira não deu tanta atenção ao caso equatoriano, se compararmos com a cobertura do que se passou na Venezuela e na Argentina. O Equador está longe de ser uma das grandes potências sul-americanas. Sua nova Lei Orgância de Comunicação representa, porém, mais um passo à frente na transformação de sistemas comerciais em sistemas de comunicação efetivamente democráticos em nosso continente. Não à toa o empresariado está preocupado.
Fonte: Carta Capital