Por *Fábio Serravale Franco
No presente texto, serão abordados apenas pontos relativos ao âmbito criminal da chamada “Lei Seca”, em uma perspectiva propositiva, tomando como base aspectos práticos de sua aplicabilidade diante de um atual cenário legislativo de ineficácia da norma. Portanto, aspectos eminentemente jurídicos serão utilizados como suporte, sem um aprofundamento dogmático de conceitos e sem uma avaliação das proposições legislativas atualmente em trâmite no Congresso Nacional.
Com efeito, é recorrente o tema “Lei Seca” nos noticiários e em toda a mídia como um todo, pelos reflexos deletérios que a combinação álcool x direção provocam em desfavor das famílias, da sociedade e do Estado. A cada novo evento social, quer seja pela ocorrência de um acidente de repercussão, pela edição de uma nova legislação ou por uma decisão judicial, uma nova tese é desenvolvida ou as diversas mídias elaboram conclusões sobre o assunto, interferindo em iniciativas no âmbito legislativo, que não correspondem à realidade social vivenciada, que culmina em normas sem uma efetividade prática.
A “bola da vez” foi a decisão do STJ, exarada no REsp 1111566/DF, no final de março de 2012, que considerou apenas como prova válida para constatação da embriaguez no caso da ocorrência do crime capitulado no art. 306 da Lei 9503/97, o teste clínico (de sangue) ou o teste de etilômetro.
No âmbito da Polícia Rodoviária Federal, desde a edição da chamada “Lei Seca” sempre foi adotado este entendimento, de que o crime exige a constatação do índice de concentração discriminado no tipo legal, que deve ser comprovado através de etilômetro ou de teste clínico. Isso não descarta, em caso de recusa do cidadão na colaboração da produção da prova, a adoção das medidas administrativas cabíveis, que por si só, já poderiam ser suficientes para a repreensão do ilícito.
Nesse passo, a decisão do Superior Tribunal de Justiça acima mencionada, em nada altera o cotidiano das fiscalizações de alcoolemia, nem irá inviabilizar a sua correta aplicação. Ademais, impende ressaltar e adentrar nos reais motivos da falta de efetividade na repreensão da combinação álcool x direção, que não guardam uma relação única com os meios de prova necessários para a configuração do tipo penal.
Obviamente que a limitação dos meios de prova impede a fiscalização pelos agentes de trânsito, no âmbito criminal, caso haja a recusa do condutor em realizar os testes disponíveis. Mas tal situação decorre da redação do art. 306 da Lei 9503/97, que estabeleceu um limite, que somente é aferível com um teste que aponte o índice de concentração, caso contrário, impossível a consumação do crime, por falta de materialidade. Então o problema não está no STJ e sim na redação da Lei.
Consequentemente, a tendência do art. 306 da Lei 9503/97 é ter sua redação modificada no sentido de albergar um texto que exclua a necessidade do índice de concentração de álcool para a configuração do crime, a fim de possibilitar a constatação da embriaguez pelo agente de trânsito por outros meios de prova disponíveis. Contudo, será oportunizado ao condutor o direito de realizar o teste de etilômetro para comprovar o real estado de sobriedade/embriaguez.
Em casos extraídos da prática de fiscalização de trânsito, com a aplicação da atual “Lei Seca”, depara-se com situações inusitadas, como por exemplo, em casos em que o condutor afirma ter tomado “apenas um copinho” e se recusa inicialmente a “soprar o bafômetro”. O mesmo é informado pelos agentes, que tal conduta implicará no mesmo efeito jurídico de “soprar” e acusar a concentração compreendida entre 0,1 mg/L e 0,29 mg/L (Já considerado a margem de erro estabelecida pelo INMETRO), qual seja, notificação da autuação e medidas administrativas. Ato contínuo, o condutor resolve realizar o teste de etilômetro e a concentração de álcool fica abaixo de 0,1 mg/L. Ou seja, nenhum ilícito perpetrado. Assim, o etilômetro pode ser um instrumento de defesa a favor do cidadão.
Ultrapassada essa questão, impende ressaltar, que o real problema da efetividade da “Lei Seca” reside na dificuldade de aplicação prática em sua plenitude, que permanecerá com a edição de qualquer legislação que venha a ser editada visando apenas a modificação do meio de prova ou de aumento da pena a ser aplicada.
Em uma hipótese absurda, se fosse cominada para o tipo penal do art. 306 da Lei 9503/97, uma pena de 30 anos, também não seria suficiente para afastar nem inibir a ocorrência do ilícito. Por um simples motivo, as estruturas estatais necessárias para a aplicação da pena, com a garantia dos direitos constitucionais vigentes, não conseguem atender a demanda gerada por todos os tipos penais existentes, gerando uma seletividade na apuração/processamento/julgamento dos crimes.
Em uma análise empírica contata-se que:
a) quase todos os condutores abordados colaboram na realização do teste de etilômetro. (Portanto, os meios de prova são adequados);
b) Há uma demora do procedimento do flagrante nas Polícias Judiciárias, que às vezes chega a 10 horas. Inicialmente pelo deslocamento, bem como pela burocracia ínsita da lavratura do ato, o que impede uma continuidade da fiscalização de trânsito;
c) Ausência de efetividade na aplicação da pena no âmbito jurisdicional. Em 5 (anos) realizando prisões relacionadas ao art. 306 da Lei 9503/97 (Certamente mais de 50 prisões) nunca fui intimado para uma audiência de instrução destes possíveis processos. Também não tenho notícia que algum outro PRF que trabalhou/trabalha comigo tenha sido intimado para tal fim;
Sendo assim, os fenômenos sociais observados na prática, decorrentes da aplicação da legislação de trânsito pelos órgãos de atuação estatal, devem lastrear as modificações legislativas, a fim de aprimorar os mecanismos de repressão, tomando por base a efetividade da medida a ser adotada. Deve ser apurada com bastante cautela qualquer proposta legislativa que tenha emergido de fatos isolados divulgados pelas diversas mídias, ou seja, que possuem uma carga axiológica de clamor social e emoção.
O primeiro problema a ser apontado reside justamente na longa via a ser percorrida para aplicação da pena. Inicia-se pelo estado de flagrância constatado pelos agentes de trânsito, após pela Polícia Judiciária que lavrará o flagrante, podendo arbitrar a fiança, bem como elaborar o relatório final do inquérito que será instaurado.
Ato contínuo, o Ministério Público irá apurar se existe justa causa para oferecimento da denúncia. Oferecendo a denúncia, será iniciado um processo penal como todos os ritos, recursos, incidentes processuais e ações constitucionais (Habeas Corpus). Toda essa estrutura demanda bastante tempo, recursos humanos (servidores públicos), custos para o Erário e efetividade mínima, já que o condutor permanecerá conduzindo o veículo pelas vias do nosso país, sem qualquer resposta do Estado para a sua conduta.
Diante disto, constata-se que a demora na aplicação da pena ou sua não aplicação é tão grave quanto a ausência de fiscalização, já que transmitem a mesma sensação para os condutores infratores: impunidade. Com uma agravante, o indivíduo que nunca foi flagrado não sabe o que pode advir de sua conduta, mas o indivíduo que foi flagrado e não foi punido, tem a certeza da impunidade.
Sendo assim, uma adaptação da pena e dos procedimentos pode trazer consequências práticas positivas para a efetividade no combate a conduta de conduzir veículo automotor sobre efeito de álcool. Tal adaptação deve contemplar:
a) Redução da pena privativa de liberdade para ser considerado crime de menor potencial ofensivo, permitindo a simplificação dos procedimentos, aplicação da legislação em maior número de condutores, bem como celeridade no trâmite do processo no âmbito jurisdicional e possibilidade de transação penal, com o oferecimento pelo Ministério Público de uma obrigação condizente para o caso concreto. (Em casos de acidentes com vítimas graves ou óbito, há um dano efetivo, que deve ter uma reprimenda maior).
b) Possibilidade de lavratura de TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência) diretamente pelo órgão de trânsito responsável pela fiscalização, com a discriminação em Lei das peças necessárias à formação do instrumento que será enviado à Justiça, ao Ministério Público e à Defensoria Pública (a ser enviado preferencialmente por meios eletrônicos). Tal medida irá garantir aos agentes de trânsito a continuidade da fiscalização de trânsito sem a interrupção para apresentação do cidadão na Polícia Judiciária. Para a Polícia Judiciária também haverá benefícios com a redução do volume de um trabalho que visa atender unicamente a formalidade exacerbada.
c) Previsão em Lei de medida cautelar de “sequestro” do veículo e da CNH (Carteira Nacional de Habilitação), em substituição a pena privativa de liberdade (previsão no art. 282, 6º, CPP), até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A medida cautelar de “sequestro” poderia ser substituída por caução prestada, desde que determinada por ordem judicial. Visando o perecimento do bem, caso transcorrido prazo razoável para a conclusão do processo, poderia ser efetivado leilão judicial do bem, com o depósito do valor em conta remunerada.
d) Aplicação de pena de multa, com valor razoável, combinada com a medida privativa de liberdade de menor potencial ofensivo.
e) Estimulo à criação de Varas Especializadas no julgamento de crimes de trânsito.
f) Reversão dos valores das cauções (com o trânsito em julgado), das transações penais e das multas (sanção penal) para o órgão de trânsito responsável pela fiscalização, visando o melhor aparelhamento do órgão.
g) Por fim, conciliando com todas estas medidas, a criação de mecanismos de Justiça Restaurativa, com o fito de aproximar ofensor das vítimas, com a reparação do dano perpetrado.
Com estas medidas, alguns fenômenos sociais que inviabilizam uma aplicação plena da Lei seriam transponíveis, bem como a pena atenderia sua função social, com as seguintes consequências:
a) Redução do tempo da equipe de fiscalização no atendimento da ocorrência, com maior disponibilidade para efetivar novas fiscalizações e melhor aproveitamento e otimização dos recursos humanos e materiais disponíveis;
b) Menor burocracia nos procedimentos administrativos e dos ritos processuais, com maior celeridade nos julgamentos e na aplicação da norma;
c) Substituição de uma medida de privação de liberdade (prisão em flagante – bem jurídico: liberdade) por uma medida cautelar de sequestro do bem (bem jurídico: patrimônio), com resultados práticos satisfatórios, já que o cidadão, pelo menos com o mesmo veículo, ficará privado de repetir o ilícito, bem como ficará privado de conduzir veículo automotor pela ausência da CNH, até ulterior deliberação do juízo;
d) Especialização da Unidade Judiciária responsável para processar e julgar crimes de trânsito;
e) Aparelhamento dos órgãos de fiscalização com recursos provenientes de multas (penal), transação penal e cauções;
f) Conscientização do ofensor com mecanismos de Justiça Restaurativa, bem como maior satisfação das vítimas (A sociedade), que sentirão que os infratores foram devidamente responsabilizados.
Conclusão:
Diante do cenário traçado acima, conclui-se que a segregação do binômio álcool x direção veicular passa necessariamente por uma mudança de paradigma relativo ao atual modelo persecutório estatal. Este modelo encontra-se lastreado em uma fórmula única de sanção penal pautada na privação de liberdade, com procedimentos burocráticos desnecessários, que não se coadunam com as estruturas dos órgãos responsáveis por esta persecução, sem qualquer efetividade na aplicação da norma sancionatória.
Sendo assim, a adequação das sanções e dos procedimentos que deverão ser adotados para garantir efetividade à repressão da conduta delitiva consistente em dirigir sob influência de álcool é medida que se impõe.
Estas modificações visam salvaguardar direitos fundamentais que restam concretamente ameaçados com a conduta de conduzir veículo automotor sob efeito de álcool, como direito à vida, integridade física e psíquica, locomoção, patrimônio, dos usuários das vias de nosso país.
*Fábio Serravale Franco, graduado em Direito pela UFBA, pós-graduado em Direito Tributário pelo JusPodivm, Policial Rodoviário Federal desde 2006 e também filiado e diretor jurídico substituto do SINPRF/BA.