18

jun/2013

Uma bomba-relógio muito difícil de desarmar

Por Daniel Martins de Barros

O comportamento das multidões só começou a interessar aos cientistas no final do século 19, particularmente em Paris, onde movimentos populares preocupavam os cidadãos que viam-nos frequentemente descambar para violência. Um dos primeiros teóricos a arriscar algumas explicações para a dinâmica das massas foi Gustave Le Bon, no seu clássico Psicologia das Multidões, de 1895. Le Bon acreditava que na reunião das pessoas surgia uma alma coletiva, minando a individualidade dos sujeitos. …

Inicialmente acreditava-se que a violência das massas era quase como um subproduto do comportamento irracional que surgia dessa perda dos freios individuais. O próprio Freud, ainda no começo do século 20 escreveu, inspirado por tais ideias, Psicologia das Massas e Análise do Eu, teorizando que a identificação com os líderes de grandes movimentos suprimiria a capacidade de autocrítica uma vez que o líder faria as vezes do superego, na terminologia psicanalítica, e a partir daí seria possível comportar-se de maneira antes inimaginável.

Tal pensamento mudou ao longo do tempo, sobretudo depois que os cientistas sociais passaram eles mesmos a se envolver em passeatas e piquetes nos anos 60, pelos direitos civis, contra a guerra do Vietnã etc. Percebeu-se então que o comportamento das multidões de fato transcende o dos indivíduos, mas não pode ser considerado irracional.

Ao contrário, existem determinantes bastante claros e identificáveis por trás da maioria dos atos violentos que ocorrem em passeatas quando a ação dos grupos passa a ser analisada em termos das relações entre os atores representados e considerando-se contextos políticos e históricos dos indivíduos envolvidos.

Isso não exclui de maneira alguma a influência que o conjunto exerce sobre o sujeito. Embora não percebamos no dia a dia, o fato de sermos seres sociais nos faz susceptíveis ao movimento de manada, e o comportamento dos outros é muito mais espelhado por nós do que imaginamos. Quando se adere a um movimento qualquer, a identificação entre as pessoas aumenta ainda mais essa reciprocidade. Nesse momento, qualquer atitude mais agressiva corre o risco de se tornar um estopim para uma escalada de violência.

Nas passeatas dos últimos dias em São Paulo há a reunião de vários fatores de risco para o comportamento do grupo se tornar violento: há uma reivindicação clara que diz respeito à mobilidade urbana; há assim uma causa comum entre os manifestantes; o tamanho do grupo que ele tem reunido confere uma grande sensação de poder às pessoas. Some-se a isso a pouca legitimidade que se confere à polícia – o que por si só aumenta a chance dos enfrentamentos – e a ação ostensiva que esta vem empreendendo. É óbvio que a atuação policial agressiva gera um antagonismo na massa, que passa a medir forças com os soldados, fomentando uma espiral crescente de violência.

É uma bomba-relógio muito difícil de desarmar, dado o conjunto de variáveis envolvidas. Há experiências bem sucedidas na Europa nas quais a redução do contingente policial em jogos de futebol reduziu os eventos violentos de hooligans, mas há que ter muita coragem, hoje em dia, para dizer que vamos resolver os problemas dessas passeatas colocando menos polícia na rua.
Daniel Martins de Barros  é psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas

Fonte: Estado de São Paulo

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